Nova geração promove transformação social inédita no Uruguai

País aprovou aborto e caminha para liberar casamento gay e regular a maconha

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Foto do author Luiz Raatz
Por Luiz Raatz e MONTEVIDÉU
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Uma revolução silenciosa está em curso no Uruguai. Nas arborizadas praças de Montevidéu, os politizados uruguaios, com a tradicional garrafa térmica sob o braço e o chimarrão à mão, discutem as três grandes mudanças sociais impulsionadas pelo governo do presidente José "Pepe" Mujica. No começo de dezembro, entrou em vigor a lei que descrimina a prática do aborto. No dia 11, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto que legaliza o casamento entre pessoas do mesmo sexo, que será votado pelo Senado na quarta-feira. Em 2013, o Congresso deve discutir um projeto de lei que regula o consumo e a venda de maconha, que não tem consenso dentro do governo. "É muita mudança ao mesmo tempo" é a frase que mais se ouve entre os uruguaios sobre as leis. As mudanças não vieram do nada. Desde 2004, leis sobre saúde da mulher e direitos dos homossexuais têm sido aprovadas. Com o poder central nas mãos da Frente Ampla, movimentos sociais, compostos basicamente por jovens, viram a chance de tentar impor sua agenda. Para analistas, o Uruguai passa por um processo de transformação social. "Há uma demanda da sociedade civil que tem como base uma filosofia liberal", disse a socióloga Veronica Filardo, da Universidade da República (UDR). "É uma mudança, sobretudo filosófica. Foi colocada na agenda pública uma demanda de uma geração."Os setores mais conservadores da sociedade uruguaia, como a Igreja, cidadãos mais velhos e políticos tradicionais são mais resistentes às mudanças e veem nas leis propostas por Mujica uma tentativa de tirar o foco dos recentes problemas econômicos, como a alta da inflação - de 9,12% nos últimos 12 meses - e a falência da principal companhia aérea uruguaia, a Pluna. Ainda assim, alguns deputados e senadores dos Partidos Nacional (Blanco) e Colorado, que dominaram a política uruguaia até 2005, já declararam apoio à aprovação do casamento gay e da liberação da maconha, temendo que os projetos sejam "politicamente capitalizados" pela Frente Ampla. "Essas leis são uma distração dos grandes problemas nacionais e a esquerda radicaliza a discussão", acusou o deputado blanco Pablo Iturralde. Contrária às três leis, entidades religiosas têm uma força limitada no país. O Uruguai conhecido pela forte tradição laica e desde a redemocratização, em 1985, a força política da Igreja Católica tem caído. "Hoje, os católicos recebem outras influências e a opinião da Igreja não determina a opinião dos fiéis", acrescentou a analista da UDR.A Lei de Interrupção Voluntária permite o aborto sob determinadas condições. O procedimento tem de ser realizado até as 12 semanas de gravidez. A mulher que optar pelo procedimento tem de passar por uma consulta no Sistema de Saúde Pública do Uruguai e informar a um médico sobre seus motivos. Será direcionada a uma equipe multidisciplinar, com médicos, psicólogos e assistentes sociais e terá cinco dias para decidir, antes de o aborto ser feito, por meio do medicamento misoprostol. "O veto de Tabaré Vásquez ao aborto em 2008 produziu tensões no país e neste novo período de governo discutimos novamente a lei do aborto", disse ao Estado o ministro da Saúde do Uruguai, Jorge Venegas. "As pessoas se esquecem que isso faz parte de algo mais amplo, que é a Lei de Direito Sexual e Reprodutivo da Mulher."Para o diretor da Sociedade dos Ginecologistas do Uruguai, Gustavo Ferreiro, a lei do aborto é a última etapa de um processo que já dura dez anos e tem como base a prevenção da mortalidade materna em abortos clandestinos. "Pela lei, não podíamos participar do aborto, mas podíamos assessorar a paciente para não usar métodos que lhe custassem a vida ou causassem complicações ", disse Ferreiro. "Tínhamos uma mortalidade materna por abortos clandestinos muita alta. Hoje é zero."Casamento gay. Ao contrário do aborto, o casamento gay tem apoio até mesmo de políticos da oposição. A poucos dias da votação, o coletivo Ovelhas Negras, entidade que pressiona pela aprovação da união civil de homossexuais, contava com 53 votos - eram necessários 50 para a aprovação. Tiveram 81. "Nós visitamos todos os partidos políticos. Todos", explicou Federico Graña, do coletivo. "Nosso feito político foi mudar alguns conceitos. Isso nos permitiu mudar a agenda e nesses últimos sete anos nos articular com o movimento feminista, o movimento pela liberação da maconha e o movimento afro e com os estudantes." Parlamentares da oposição também aprovaram o projeto. O deputado Iturralde é um deles. "O partido liberou os votos da bancada por julgar o tema uma questão de consciência", afirmou. Maconha. A legalização da maconha, proposta pelo Executivo uruguaio para coibir a violência relacionada ao tráfico, é a única das três propostas que ainda não tramita no Congresso. O projeto do governo prevê uma regulamentação do consumo e do comércio da droga. Cada usuário seria registrado e teria direito ao consumo de 40 gramas por mês, supervisionados pelo Instituto Nacional da Maconha, órgão a ser criado pelo governo. Há a possibilidade de o cultivo para consumo próprio ser aprovado. Nesta semana, o presidente José Mujica se disse contrário a uma votação no Congresso do tema porque a maioria dos uruguaios é contra o projeto.O secretário executivo da Junta Nacional de Drogas Julio Cazares diz que o principal objetivo do projeto é buscar uma alternativa ao combate tradicional ao narcotráfico, considerado problemático e ineficaz. "Estamos entrando em uma nova área, com o controle da oferta a partir de instrumentos de mercado, que tendem a tirar o controle econômico do narcotráfico", explicou. No Congresso, a oposição também cogita de apoiar o projeto. "Acho boa a ideia de clubes de cultivo, mas não concordo com o governo vender maconha", disse Iturralde. A ONG Proderechos defende o cultivo para consumo próprio. "O Executivo propôs legalizar o comércio, ignorando um pouco o debate ", criticou Cecilia Muso, integrante do grupo.

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