Novo coronavírus devastou o maior mercado de rua da América Latina

Vendedores do mercado Central de Abasto da Cidade do México morreram porque não podiam deixar de trabalhar e não receberam tratamentos preventivos

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Por Mary Beth Sheridan
Atualização:

CIDADE DO MÉXICO - Martín Mateo estava resfriado. Ou assim ele pensava: dor de garganta, dores no corpo, coriza. "Ele se sentia mal, mas continuou trabalhando", disse seu filho Carlos. O pai de 50 anos trabalhava há décadas como tomatero - vendedor de tomates - no maior mercado de alimentos da América Latina.

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Coronavírus? Ele não acreditava nisso. Então, Mateo começou a ter dificuldade para respirar. Em poucos dias, ele estava morto.

Naquela altura, dezenas de seus colegas tomateros também estavam infectados. Os trabalhadores levantavam placas amarelas do lado de fora do mercado nas quais se podia ler "Zona de Alto Contágio". Pelo menos 10 vendedores de tomate morreram entre meados de abril e maio. Entre eles, estava o primo de Mateo, Antonio, um contador de uma barraca vizinha chamado Guillermo, e um homem careca que todos chamavam de El Peluche - algo como, "urso".

O corredor onde os tomates eram vendidos no famoso mercado Central de Abasto da Cidade do México oferece um vislumbre do motivo pelo qual o vírus atingiu o país com tanta força. Ele cortou caminho através do extenso complexo, escolhendo trabalhadores vulneráveis devido a problemas relacionados à pobreza: doenças crônicas, desconfiança do governo, necessidade de continuar ganhando dinheiro.

Pessoas trabalham em um depósito de lixo no mercado atacadista Central de Abasto, na Cidade do México Foto: Daniel Becerril/Reuters

Embora não haja dados oficiais, os trabalhadores podem citar dezenas de pessoas nos corredores de hortaliças que perderam a vida - vendedores de feijão verde, vendedores de pimenta e pimentões, vendedores de batata - em um dos surtos mais brutais da cidade. "Aqui não acreditávamos que o coronavírus fosse uma ameaça", disse Anastasio Ramón Alonso, de 57 anos, um vendedor de tomate de longa data. "Mas quando as pessoas começaram a morrer e morrer e morrer, perdemos nossa incredulidade."

As autoridades registraram mais de 20 mil mortes causadas pelo novo coronavírus no México, sem dúvida uma subestimação. O vírus parece ter entrado no país com os mais abastados - pessoas retornando de viagens de negócios na Itália e férias de esqui no Colorado. Mas se espalhou rapidamente para os trabalhadores de baixa renda, que foram particularmente afetados.

Saúde precária

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Como nos Estados Unidos, os pobres do México têm menos acesso a cuidados de saúde adequados. Eles sofrem com altos níveis de diabetes, hipertensão e obesidade. Mas aqui, a situação é especialmente precária. Cerca de metade dos trabalhadores do México tem empregos "informais" - empregadas domésticas, trabalhadores braçais, vendedores de mercado - sem seguro-desemprego.

Carlos Mateo, de 31 anos, seguiu os passos do pai no comércio de tomate. Ele normalmente arrecada cerca de US$ 10 por dia. "Se não trabalhamos", disse ele, "não temos dinheiro".

Na Cidade do México, epicentro da epidemia do país, as autoridades agora estão aumentando o número de testes e o rastreamento de contatos. Tardiamente, o mercado municipal enviou agentes de saúde para verificar o uso de máscaras faciais e de álcool gel e as temperaturas dos que estavam ali.

"No começo, os trabalhadores não tomavam as precauções necessárias", disse Claudia Pérez Ocampo, gerente de uma barraca no mercado. "Quando viram as pessoas morrendo, começaram a se proteger. Mas isso atingiu muitas pessoas.

"Mais do que tudo, atingiu os vendedores de tomate", disse ela. "Muitos vendedores de tomate."

Hector Garcia, gerente da Central de Abasto, disse a repórteres em 26 de abril que o novo coronavírus havia sido detectado no mercado de 1,3 quilômetros quadrados. A notícia foi preocupante: o mercado atacadista fornece alimentos para 22 dos 32 Estados do México. Supermercados, restaurantes e famílias dependiam de seus 90 mil trabalhadores.

Agora, disse Garcia, dois desses trabalhadores morreram e outros 23 foram infectados. A realidade era muito pior.

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Mortes

No interior do mercado, no corredor Q-R, meia dúzia de vendedores de tomate já haviam morrido. Entre eles estava Mateo, que sucumbiu em 18 de abril. Durante três décadas, ele se tornou um elemento fixo do corredor de tomate, um homem que emprestava seu caminhão aos outros, que sempre sorria, que trabalhava 10 horas por dia antes de finalmente descansar em uma cadeira assistindo aos filmes de ação na Netflix.

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"Ele foi uma boa pessoa para nós - realmente, boa para todos", disse seu irmão Mauro, de 48 anos, que trabalhava com ele na barraca Q-67, um espaço estreito, iluminado por lâmpadas fluorescentes, cheio de caixas empilhadas com tomates italianos e tomates caqui.

Mateo tinha hipertensão, um fator de risco para casos graves do novo coronavírus. Muitos de seus colegas também tinham doenças crônicas. No final do corredor, David Hernández, na casa dos 50 anos, pai de dois filhos, tinha diabetes. Ele morreu em meados de abril. "Tudo aconteceu tão rápido", disse o colega Roberto Sicilia.

Do outro lado do corredor, na Q-5, Isaac Pluma havia contraído algum tipo de resfriado. Pluma, de 46 anos, pai de dois filhos, tinha diabetes, mas continuou trabalhando, ofegando enquanto subia as escadas. "O chefe tentou mandá-lo para casa para descansar. Ele não quis", disse o colega Enrique González. "Ele precisava do dinheiro."

Pluma morreu em 21 de abril.

Pedro Hernández, de 58 anos, um homem quieto na Q-21, estava ficando alarmado. Ele também tinha diabetes. No final de abril, ele decidiu parar de vir ao trabalho. "Ele parecia bem", disse o colega Alberto González. Então, ele foi entubado. Ele morreu no início de maio.

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Quase três quartos das mortes causadas pelo novo coronavírus no México envolveram comorbidades, como hipertensão ou diabetes. À medida que os alimentos processados e as bebidas açucaradas baratos se proliferam nas últimas décadas, principalmente em bairros pobres, a obesidade e outras doenças crônicas se multiplicaram.

Mesmo antes do México relatar seus primeiros casos, os epidemiologistas estavam com medo do efeito do vírus em um país que sofre uma crise nutricional. "Sabemos que vamos pagar o custo de 30 ou 40 anos de deterioração da saúde", disse um dos principais integrantes da força-tarefa contra o novo coronavírus no México, Hugo López-Gatell, no final de março.

Central de Abasto, na Cidade do México, é o maior mercado de rua da América Latina Foto: Gustavo Graf/Reuters

Ações de prevenção

Depois de anunciar o surto no Central de Abasto, as autoridades da administração e do município entraram em ação. Elas enviaram 430 agentes de saúde em trajes de proteção brancos para percorrer os corredores, medir a temperatura e fazer perguntas a respeito de sintomas. Eles ofereceram testes para detectar o novo coronavírus. E insistiram que os trabalhadores usassem máscaras faciais e álcool gel.

Os vendedores de tomate disseram que era tarde demais.

"Ficamos indefesos", disse Rafael Vergara, que administra um dos maiores estabelecimentos, na barraca R-34. Doze dos seus 30 trabalhadores ficaram doentes desde meados de abril. Ele enviou funcionários para clínicas particulares para fazer testes. Mas outras poucas lojas o fizeram. O governo do México não seguiu um programa de testes em massa e rastreamento de contatos. Autoridades disseram que isso seria impraticável para uma população de 128 milhões.

Sem testes, a maioria dos trabalhadores do mercado não viu evidências de que estavam infectados. "Muitas pessoas se sentiram mal, mas não foram para casa", disse Vergara. "Eles continuaram trabalhando".

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O governo lançou uma grande campanha publicitária sobre o novo coronavírus, com entrevistas coletivas noturnas. Mas não conseguiu convencer os vendedores de tomate.

"Os mexicanos tendem a dizer 'o governo está tentando nos ferrar'", explicou Omar Martínez, cuja família administra a barraca de tomate em Q-1.

Essa desconfiança tinha raízes profundas. A escritora e ativista Irene Tello Arista cresceu em Iztapalapa, o bairro densamente povoado que circunda o mercado. Ela observou que muitos moradores careciam de serviços públicos básicos, como água encanada segura. O ponto de vista deles era: "Se o governo nunca cuidou de mim na minha vida, por que eles vão fazer isso agora?"

Nos corredores de vegetais, espalhou-se a notícia de que hospitais eram lugares perigosos onde os médicos estavam deliberadamente matando pessoas. As histórias eram absurdas. Mas muitos trabalhadores acreditaram nelas. Eles estavam acostumados a cuidados de saúde precários.

Martín Mateo e seu primo Antonio Samano, de 46 anos, foram inicialmente diagnosticados com resfriados e enviados para casa, disse Carlos Mateo. Eles morreram no mesmo dia. Mateo e seu tio Mauro foram infectados, mas se recuperaram.

Foi assim, o vírus misterioso: se espalhando entre famílias, colegas de trabalho de longa data, velhos amigos. Para Martínez, tudo começou em abril com seu tio Marcial, de 66 anos, que foi entubado. Então sua tia Antonieta, de 51 anos, morreu. Em 11 de maio, Martínez perdeu o pai, Juan, um católico fervoroso que havia ajudado a pagar o sino da igreja da vizinhança. Ele tinha 70 anos e era diabético. Mas nunca foi testado. "Ele não queria ir ao hospital", disse o filho. "Hospitais são ruins."

Proteger os trabalhadores do Central de Abastos nunca seria fácil. O mercado fornece 80% dos alimentos da capital; cerca de 300 mil compradores e entregadores o visitam todos os dias. Não foi possível fechá-lo.

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Para complicar ainda mais, é altamente compartimentado. A gerência do mercado emprega cerca de 1 mil dos 90 mil funcionários - principalmente zeladores e funcionários administrativos. O restante trabalha para os empresários que são donos ou alugam as 7.418 barracas.

Alguns tentaram ser responsáveis. O chefe de Eusebio Hernández, por exemplo, disse-lhe para tirar uma folga remunerada. Hernández tinha 60 anos, estava exausto de puxar carrinhos empilhados com caixas de produtos há anos. Mesmo assim, ele era uma presença animada na barraca R-18, discutindo política e provocando funcionárias jovens. "Ele não queria ir para casa", disse Esperanza Iglesias, mas ele concordou. Ele morreu duas semanas depois.

Outros não tiveram o luxo de uma licença remunerada. Jaime Garcia perdeu seu bom amigo Héctor Tamayo - El Peluche - vizinho de barraca na R-64. Garcia continua a trabalhar, apesar de ter 66 anos. "Pessoas com dinheiro podem ficar um, dois e até três meses em casa", disse ele. "Mas aqueles como nós que trabalham para ganhar o pão de cada dia não têm apoio financeiro".

Incerteza

Ninguém sabe quantos trabalhadores do mercado morreram. Existem apenas rumores, disse Pedro Torres, chefe de uma associação de vendedores de frutas e vegetais. "Muitas pessoas dirão que existem centenas. Outras dirão milhares", disse ele. "Mas não temos estatísticas exatas."

Garcia, o gerente, disse que sabia de seis mortes entre seus 1 mil funcionários. Jorge Ochoa, um oficial de saúde da cidade, disse que as mortes são registradas pela residência das vítimas, não pelo local de trabalho.

Entrevistas com trabalhadores indicam que pelo menos dezenas perderam a vida. Israel González, sentado em meio a montes de pimentões verdes no corredor O-P, disse que sabia de nove mortes em sua seção. Erik Cesario, outro vendedor de pimentas e pimentões, disse que sabia de 25. "Isso nos atacou terrivelmente", disse ele.

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Fernando Ponce, que vende feijões verdes e cenoura, disse que 15 de sua área morreram. Edgar Elías Chacón, um papero - vendedor de batatas - de longa data, sabia de 10.

Muitos dos chefes ficaram em casa. Os funcionários não puderam. "Os pobres pagaram o maior preço", disse Chacón.

Ochoa disse que as ações da prefeitura no mercado controlaram o vírus. Mais de 2,5 mil pessoas foram testadas, ele disse, 543 foram estavam infectadas. "Esse foi um dos nossos maiores sucessos, a estratégia no Central de Abasto", afirmou.

Mas os trabalhadores citam outro motivo pelo qual a epidemia foi contida: dezenas de proprietários de barracas decidiram fechar por semanas. Eles acabaram de reabri-las recentemente.

"Ninguém acreditou no que o governo disse, até que começamos a ver os mortos", lembrou o vendedor de tomates Jorge Amaro. "E então dissemos: 'Isso está feio. Vamos sair daqui.'" / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

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