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Numa cidade dividida por uma fronteira, as regras do vírus variam de porta para porta

Medidas conflitantes em Baarle-Hertog-Nassau tornam a vida cotidiana confusa para 11 mil moradores belgas e holandeses

Por Thomas Erdbrink
Atualização:

BAARLE-HERTOG-NASSAU - Com a fronteira que divide a Holanda da Bélgica passando exatamente na entrada do seu estúdio e galeria de arte, Sylvia Reijbroek ficou confusa sobre as regras de qual país seguir quando o coronavírus virou a Europa de cabeça para baixo.

Por segurança, ela decidiu respeitar a lei belga, uma vez que sua galeria está registrada legalmente na Bélgica, e fechou sua empresa. Mas é frustrante para ela ver os clientes indo e saindo do salão de beleza vizinho ao seu estúdio, que fica do lado holandês.

“Uma única loja nesta rua teve de atender à lei belga e fechar. A minha”, disse ela.

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À medida que os países europeus começam a flexibilizar as restrições seguindo ritmos variados, alguns autorizando empresas a reabrirem e outros mantendo o confinamento, as regras distintas vêm confundindo viajantes e muitas pessoas que vivem em áreas fronteiriças e regularmente as atravessam indo de um lado para o outro.

E em nenhum lugar essas estratégias divergentes são mais visíveis e complicadas do que na cidade de fronteira de Baarle-Hertog-Nassau, onde há diretrizes diferentes de rua para rua, porta para porta, e até dentro de prédios, com a lei holandesa aplicada num local e a belga imposta a poucos passos dali.

Baarle-Hertog-Nassau é vista com frequência como a situação de fronteira mais complexa do mundo e é difícil contestar isto. A cidade está alguns quilômetros dentro da Holanda, mas devido a um acordo firmado entre senhores feudais em 1198, está dividida em dois lados - belga e holandês.

Mas este é só o começo do quebra-cabeças. Dentro de cada lado existem enclaves pertencentes ou a um ou ao outro país - 22 enclaves belgas do lado holandês e oito enclaves holandeses do lado belga, resultando numa miscelânea confusa e perturbadora de sinalizações de fronteira.

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Loja à esquerda, na Holanda, está aberta; a da direita, na Bélgica, fechada Foto: Ilvy Njiokiktjien for The New York Times

Cada enclave está sujeito às leis do respectivo país, o que cria uma colcha de retalhos de regras e regulamentos conflitantes - mas “sem os tumultos e conflitos com frequência associados a enclaves”, disse Willem van Gool, funcionário do departamento de turismo.

Embora a vida seja pacífica dos dois lados de muitas fronteiras, não significa que a situação é fácil de administrar mesmo em circunstâncias normais. Com o coronavírus, isso ficou “um absurdo”, disse Sylvia Reijbroek.

A Bélgica, um dos países mais afetados pelo vírus na Europa, impôs o confinamento em março, com multas para qualquer pessoa que se aventure a sair de casa sem uma boa razão.

Mas a Holanda adotou medidas muito mais flexíveis, autorizando delivery de restaurantes, a abertura de lojas e escritórios do governo e permitindo a saída de pessoas às ruas. O governo apenas pediu para elas permanecerem o máximo possível em casa e manterem um distanciamento social quando estivessem fora.

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Em Baarle-Hertog-Nassau, essas medidas conflitantes tornam a vida cotidiana muito confusa para seus 11 mil moradores das duas nacionalidades.

“Seguimos a lei belga, de modo que fechamos todas as lojas na nossa área”, disse Frans de Bont, prefeito de Baarle-Hertog, a parte belga da cidade. “Esperávamos que os holandeses seguissem nossa política, ou pelo menos que as seguissem dentro desta cidade”. Mas eles não seguiram.

O governo belga respondeu à epidemia fechando todos os cruzamentos ao longa da fronteira de 450 quilômetros com a Holanda. Os postos de controle, há muito tempo esquecidos, ressurgiram de repente, com a polícia bloqueando a entrada e a saída. Os holandeses, acostumados a ir à Bélgica em busca de gasolina mais barata, ficaram frustrados. Na confusão dos primeiros dias, algumas famílias se viram separadas, mas depois permissões foram concedidas para visitas familiares através da fronteira.

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Mas dentro e fora de Baarle-Hertog-Nassaau esses fechamentos são física e psiquicamente impossíveis.

“Fizemos tentativas usando alambrados, mas não funcionou”, disse Van Gool, presidente do departamento de turismo local. “Havia alambrados por toda a parte, na cidade”.

Assim, dentro da cidade todas as lojas do lado holandês estão abertas, com os clientes holandeses comprando batatas fritas e sorvetes, ao passo que os belgas olham mal-humorados das janelas de suas casas.

A galeria de Sylvia Reijbroek não é a única a se ver literalmente presa no meio. Mais abaixo na rua, uma loja da Zeeman, uma cadeia conhecida nos dois países pelas roupas baratas, está exatamente no meio de uma das fronteiras do enclave.

Willem van Gool e Sylvia Reijbroek em suas respectivas lojas junto da fronteira entre Holanda e Bélgica Foto: Ilvy Njiokiktjien for The New York Times

O lado belga da loja primeiramente estava cercado com uma fita vermelha e branca e depois por prateleiras repletas de chocolates e brinquedos. Clientes em busca de lingerie tiveram menos sorte, disse um vendedor “porque suas prateleiras estão na Bélgica”. “É isto que torna nossa cidade interessante, disse Van Gool.

Nem sempre foi assim. Através dos séculos os dois lados criaram um modus vivendi, com os habitantes dos enclaves tendo o direito de passagem de maneira que, por exemplo, Sylvia Reijbroek vive em seu apartamento do outro lado da rua, na Holanda.

Van Gool disse que existe um acordo de governos permitindo que as duas administrações locais facilitem as decisões envolvendo novas vias e eventos culturais. “Somos um exemplo. Aqui sempre encontramos o bom caminho”. E apesar das diferenças culturais, as decisões são tomadas com respeito por cada um, disse ele.

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Esta semana diversos países europeus começaram a afrouxar as restrições, com os governos procurando aplacar a inquietação das populações e retomar a economia paralisada sem criar oportunidade para a doença se propagar.

Por todo o continente, escolas e aeroportos começaram a funcionar, e restaurantes, cabeleireiros e outras pequenas empresas foram autorizados a abrir as portas.  

Baarle-Hertog-Nassau está pronta para uma flexibilização, tendo se saído bem na epidemia: somente duas mortes de pessoas idosas do lado holandês e oito casos confirmados e nenhuma morte do lado belga.

Na segunda-feira, a Bélgica adotou a primeira medida no sentido de um afrouxamento, restabelecendo os serviços de transporte público. Com base nas novas regras, o uso de máscaras é obrigatório quando as pessoas viajarem, sob pena de multa de 250 euros.

Mas na vizinha Holanda os políticos criticam o uso de máscaras. Tentando evitar confusão, o prefeito belga, De Bont, esteve muito ocupado na semana passada, preparando os cidadãos para as novas regras com relação às máscaras.

“Quando você toma o ônibus em Thurhout, na Bélgica, para vir até aqui, terá de usar máscara. Mas quando chegar em solo holandês pode retirá-la; O que é um pouco estranho”. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

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