'O anticomunismo justificou golpes no Brasil'

Segundo historiador, como a esquerda costuma abraçar propostas progressistas também em termos de valores e comportamentos, frequentemente ela atrai o ódio conservador

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Por Wilson Tosta
Atualização:

O historiador Rodrigo Patto Sá Motta, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), acredita que o Brasil pode estar vivendo a quarta grande onda anticomunista da sua história. Autor de Em guarda contra o perigo vermelho (2002), o pesquisador lembra que o combate aos comunistas já uniu os conservadores em outros períodos da vida brasileira. Foi assim em 1935-37; em 1946-48; e em 1961-64. Patto também contesta a noção de que o comunismo brasileiro foi de pequena importância – apesar da relevância limitada dos atuais PCs do Brasil - e  lembra que os comunistas tiveram 10% dos votos no pós-guerra.

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Às vésperas dos 100 anos da Revolução de 1917, o anticomunismo ainda é forte no Brasil, onde os partidos comunistas são fracos. Por quê?

Primeiramente, não existe relação direta entre a força dos comunistas e as reações que eles inspiram em seus adversários. No caso dos Estados Unidos, por exemplo, o PC sempre foi muito frágil, e o anticomunismo era - e é - muito arraigado. Quanto ao Brasil, o anticomunismo tornou-se uma tradição forte a partir dos anos 1930, tendo inspirado e justificado os golpes de 1937 e 1964 e as ditaduras subsequentes. Pois bem, tal tradição foi reapropriada recentemente, na luta contra os governos petistas, e adaptada aos novos tempos, com alguns atores da direita falando em “comuno-petismo”, para conectar o partido de Lula às imagens negativas tradicionais sobre o comunismo histórico. E com bastante sucesso, como temos visto. No meu livro, argumentei que o Brasil viveu três grandes ondas anticomunistas. Pode ser que estejamos testemunhando a quarta.

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que o Imposto de Renda deve ser cobrado dos "ricos" e não tirado do salário do trabalhador Foto: MIGUEL SCHINCARIOL/AFP

Quais forças e líderes políticos mais exploraram o anticomunismo no Brasil? E quais foram os episódios-chave para isso?

No Brasil, o anticomunismo tem sido, basicamente, um fenômeno de direita. Os principais discursos e ações anticomunistas foram inspirados em valores de direita, e conduzidos por grupos e lideranças de direita, notadamente liberais, conservadores, fascistas e nacionalistas autoritários. Quanto às lideranças eu destacaria, entre vários outros casos, os integralistas de Plínio Salgado, que tiveram no anticomunismo uma bandeira essencial, tendo mantido influência inclusive durante a ditadura militar. Outro caso clássico foi Carlos Lacerda, jornalista e político da UDN, um ex-comunista que se tornou campeão na luta contra os vermelhos. Os episódios-chave foram a repressão pós-1935 e o golpe do Estado Novo; o contexto entre 1946-48, uma nova onda anticomunista que ilegalizou o PCB e reprimiu o movimento sindical então em ascensão; e o golpe de 1964, naturalmente, que deu origem à ditadura cujo legado ainda não superamos inteiramente.

Haveria um conservadorismo tradicional da sociedade, mesmo entre os mais pobres, que teria sido base para esse anticomunismo?

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O conservadorismo tem como base o medo às mudanças e a defesa da ordem tradicional. Isso tem relação com interesses materiais, obviamente, pelo temor de perder posições sociais e patrimônio, às vezes até mesmo o status social. Mas um dos pontos essenciais, e que se conecta com o conservadorismo popular, é o medo de mudanças nos valores e nos comportamentos. Trata-se da defesa da família tradicional, por exemplo, com a recusa às opções sexuais não convencionais, sentimentos que geralmente estão lastreados em preceitos religiosos. Como a esquerda costuma abraçar propostas progressistas também em termos de valores e comportamentos, frequentemente ela atrai o ódio conservador. Há cem anos, o fato de a URSS ter legalizado o divórcio e o aborto mobilizou reações iradas dos conservadores. Recentemente, o tema é a diversidade sexual, que muitos conservadores conectam com o perigo vermelho.

O PCB, assim como o PC do B, foi uma organização pequena. Ainda assim, o comunismo até hoje é bicho-papão no País. Por quê?

O PC não foi tão fraco assim. No Brasil, existiu um dos movimentos comunistas mais fortes das Américas entre as décadas de 40 e 60. Nas eleições de que participou, em 1945-46, o PCB recebeu cerca de 10% dos votos, o que provocou grande medo na direita. Por isso o partido foi ilegalizado. Além disso, o partido atraiu lideranças de destaque para os seus quadros, além de lideranças dos movimentos sociais. O PC e os comunistas foram hegemônicos na esquerda brasileira por muitas décadas, daí terem atraído os ataques mais fortes da direita antiesquerdista. Há que considerar também o quadro internacional, a Guerra Fria, que aumentava a pressão contra os comunistas locais por serem considerados fiéis à URSS.

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O PT tomou o lugar dos comunistas como "bicho-papão" do comunismo?

Em certa medida, sim, o que é paradoxal, pois o PT surgiu como adversário dos PC. Mas, como se tornou o novo partido hegemônico à esquerda, passou a receber os ataques dos grupos antiesquerdistas. O fato de ter chegado ao poder aumentou a indisposição dos grupos de direita que têm pavor a qualquer política de viés social, sejam bolsas, cotas raciais etc. E o tema religioso e moral tem papel importante, pois grupos cristãos conservadores atribuem à esquerda toda a culpa pelas mudanças de comportamento entre os jovens. O problema é que a convergência entre antipetismo e anticomunismo implica enorme manipulação. O PT não é um partido comunista, embora possa ter alguns militantes com esse perfil. Nem sequer aplicou medidas socialistas, apenas algumas ações modestas visando a distribuição de renda. Isso não é socialismo.