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É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais. Escreve uma vez por semana.

Opinião|O ataque e as campanhas nos EUA

O massacre de Orlando reúne de forma condensada algumas das grandes questões que pautam a corrida eleitoral nos EUA: o acesso às armas, a imigração, o radicalismo islâmico e a homofobia

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Atualização:

O massacre de Orlando reúne de forma condensada algumas das grandes questões que pautam a corrida eleitoral nos EUA: o acesso às armas, a imigração, o radicalismo islâmico e a homofobia. Cada um desses temas está tão contaminado politicamente que, ao ouvir as reações dos principais atores nos campos democrata e republicano, tem-se a impressão de que estão falando de acontecimentos diferentes. O que permeia essa divisão são visões opostas de como exercer a liberdade e do papel do Estado como proteção ou como ameaça.

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Para o candidato republicano Donald Trump e o senador John McCain, que enfrentou Barack Obama na eleição de 2008, um terrorista muçulmano, filho de afegãos, beneficiado pela irresponsabilidade com que os EUA acolhem inimigos e pela frouxidão da vigilância, invadiu um local público que não estava apropriadamente guardado e matou e feriu uma centena de pessoas porque elas não estavam armadas para se defender. Uma semana antes do atentado de domingo, Trump havia defendido mudar a lei para que as escolas deixem de ser áreas livres de armas e professores e funcionários possam andar armados para se defenderem de alunos e invasores violentos. 

Agora, imagine o que teria acontecido se ao menos uma parcela das 320 pessoas na boate Pulse estivesse armada e abrisse fogo para conter Omar Mateen. Nem mesmo a polícia entrou atirando, mas tentou negociar com Mateen por cerca de 3 horas enquanto ele mantinha reféns.

McCain chegou a dizer que Obama é o responsável pela matança por ter retirado as tropas americanas do Iraque, o que teria contribuído para a criação do Estado Islâmico (EI). Na verdade, o grupo foi formado na Síria, com remanescentes de militantes da Al-Qaeda no Iraque, que se formou não por causa da retirada americana de 2011, e sim graças à invasão de 2003 pelo republicano George W. Bush. 

Além disso, diante de tudo o que se sabe hoje sobre a trajetória de Mateen, ele não agiu com apoio ou mesmo por ordem do EI. Mateen apenas recorreu ao grupo para dignificar a sua explosão de ódio com uma causa político-religiosa, para esconder a sua fraqueza com um manto de heroísmo, para compensar seu menosprezo por si mesmo com um instante de glória narcísica. Mateen era um miserável que sofreu bullying na escola por ser gordinho e estranho. Levou um tapa na cara de seu pai na frente dos colegas depois de ter-se regozijado com o atentado contra as Torres Gêmeas. Batia em sua primeira mulher e levava uma vida dupla marcando encontros com homossexuais em um site de relacionamentos.

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A “auto-radicalização” de Mateen por meio da propaganda do EI na internet é o aspecto menos importante de sua passagem ao ato. Foi a bandeira ao alcance de sua mão, em razão de sua formação muçulmana e origem afegã. Seria perfeitamente plausível – como aconteceu inúmeras vezes – que um cristão, judeu ou ateu, com antepassados há séculos no país, cometesse um ato semelhante. 

Depois de matar sua mãe, Adam Lanza, de 20 anos, invadiu a escola primária Sandy Hook, em Connecticut, e matou 20 crianças com idades de 6 a 7 anos e 6 funcionários da instituição, antes de se suicidar, em dezembro de 2012. O único traço comum entre Lanza e Mateen, além de seu sofrimento psicológico, é a facilidade de acesso às armas: o jovem levava dois fuzis, um deles pertencente a sua mãe, e duas pistolas automáticas. 

O senador democrata Chris Murphy, de Connecticut, autor do projeto que exige verificação de antecedentes criminais para compradores de armas pela internet e em feiras do setor, lançou-se na campanha pelo controle do acesso diante desse massacre em seu Estado. Depois de a bancada democrata trancar a pauta do Senado por 15 horas, de quarta para quinta-feira, os republicanos concordaram em examinar esse projeto e um outro, que proíbe a venda de armas para investigados por terrorismo – caso em que Mateen se enquadraria. 

Essas emendas não evitariam ações terroristas. A atual mulher de Mateen, Salman, levou-o à boate e apoiou sua ação, e poderia ter comprado as armas em seu lugar. O hispânico Enrique Marquez Jr., convertido ao Islã em 2007, é acusado de ter fornecido os dois fuzis usados pelo casal de origem paquistanesa que matou 14 pessoas e feriu 22 em uma festa de fim de ano em San Bernardino, na Califórnia, em dezembro. A maioria republicana no Congresso resiste a aprovar projetos tão tímidos como esses, por receio do prejuízo político em rever suas posições a favor das liberdades individuais. 

Como acontece na economia, na saúde e em todos os outros campos, republicanos e democratas têm posições irreconciliáveis sobre se é o indivíduo ou o Estado quem deve dar conta dos problemas. Faz parte de sua identidade aferrar-se a uma ou outra posição, independentemente até dos fatos.

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Opinião por Lourival Sant'Anna

É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais

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