O autoritarismo entra em nova era

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Por Bill Keller
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Escrevendo no Financial Times na semana passada, Chrystia Freeland relembrou o ensaio de Francis Fukuyama, de 1989, intitulado O fim da História?, que apregoava o triunfo definitivo da democracia liberal. As grandes tiranias que se tornaram um pesadelo no século passado - o Império do Mal, a China Vermelha - tinham sido rechaçadas pela dupla inseparável: liberdade e prosperidade. A civilização fez a sua escolha e optou por nós. Essa era a tese dele. Agora, estudando a investida militar russa na vizinha Geórgia e o espetáculo da Olimpíada na China, Chrystia Freeland, que é editora do Financial Times e iniciou sua carreira cobrindo Rússia e Ucrânia, proclama que uma nova Era de Autoritarismo está diante de nós. Se não for ainda uma era, no mínimo é uma estação: de primavera para os autocratas, e não apenas para os monstros da liga secundária, mas para os regimes gigantes que pareciam destinados a se transformar em um monte de cinzas em 1989. Os chineses fizeram de sua Olimpíada uma exibição triunfante de proeza atlética e prestígio global sem abrandar seus ímpetos de controle e repressão. Desde os deslumbrantes passos de marcha na cerimônia de abertura até a ausência cuidadosamente policiada dos protestos, esta tem sido uma Olimpíada completamente livre da desordem democrática. O individualismo ficou limitado às linhas divisórias das pistas. As promessas pré-olímpicas de que o país atenderia às normas internacionais de comportamento não foram cumpridas. O New York Times acompanhou um cidadão que decidiu testar a oferta do governo - que determinou zonas de protesto para as partes que se sentissem prejudicadas em seus direitos, desde que apresentassem a documentação necessária. Zhang Wei pediu a licença e foi imediatamente detido por "perturbação da ordem social". Tome nota, Comitê Olímpico Internacional. Quanto à Rússia subjugar a arrogante Geórgia, o que espantou não foi a facilidade ou a audácia, mas a bravata em torno disso. E não teve a ver somente com alguns obscuros enclaves de fronteira, nem mesmo com a Geórgia. Foi uma vingança existencial. Ocorre que, se 1989 marcou um fim - o do Muro, o início do fim do império soviético, se não de fato o fim da história - o ano também marcou um início. Ele criou um amargo ressentimento na alma humilhada da Rússia e ninguém nutriu mais esse rancor do que o premiê Vladimir Putin. Ele viu o império para o qual espionava entrar em colapso. Teve de suportar as lições desprezíveis de um Ocidente rico e presunçoso. Viu os EUA seduzirem seus vizinhos, invadirem seus aliados no Iraque e, na sua visão, mexerem no mapa político da Europa como se fossem Deus. Baseado no rancor, a já estratosférica popularidade de Putin dentro de seu país cresceu enormemente, especialmente no Exército. Na China, 1989 foi o ano em que uma centelha de aspiração liberal cintilou na Praça da Paz Celestial e foi resolutamente extinta. Esse foi um outro início, ou pelo menos uma retomada: a da determinação chinesa. Em maio daquele ano, Mikhail Gorbachev visitou Pequim e as duas visões de um novo comunismo saltaram na face de um e de outro. Os manifestantes no pavilhão chinês portavam banners saudando Gorbachev como o campeão da maior liberdade que aspiravam. Enquanto isso, a delegação russa se maravilhava com a abundância vista nas lojas chinesas, a recompensa de uma política que optou pela liberalização econômica sem oposição política. Chineses e russos rejeitaram os respectivos modelos neocomunistas, mas em alguns aspectos evoluíram na direção um do outro. Hoje, ambos os países toleram um certo espírito empresarial e a liberdade social, desde que não ameacem o domínio do Estado. Ambos entenderam que pode haver uma certa estabilidade doméstica se for combinada com um pouco de oportunidade e de apelo ao orgulho nacional. Ambos descobriram que, se você é rico, menor a probabilidade de o mundo se imiscuir nos seus assuntos. O presidente dos EUA, George W. Bush, foi ridicularizado por ambos os lados por sua aparente impotência. Os neoconservadores ficaram horrorizados com as fotos de Bush gargalhando com Putin, em Pequim, enquanto blindados russos se concentravam na fronteira da Geórgia. Para um presidente que fez da exportação da democracia a sua doutrina, isso pareceu um momento de alienação. Outros dizem que essa era uma crise que Bush tacitamente encorajou ao promover o turbulento presidente da Geórgia como um amigo e candidato à Otan. No meio da semana, possivelmente incitado pela gritaria dos neoconservadores e pela retórica anti-Putin do senador John McCain, Bush enviou ajuda humanitária para a Geórgia. E, no fim de semana, pairava um ar de Guerra Fria. Mas os apuros de Bush não são somente dele. Saber como lidar com essas autocracias revigoradas é uma questão que atormenta os europeus e, com certeza, esse será um dos maiores legados que Bush deixará para seu sucessor. Dessa vez, não existe a ameaça de um apocalipse nuclear que limite as opções do Ocidente em relação aos rivais orientais. Os chineses, na verdade, estão agindo como se já tivessem passado do estágio das ameaças para uma posição de potência emergente. Esbanjam diplomacia em Taiwan, no Japão e utilizam o poder do capital. Os russos podem estar em um estágio mais adolescente de desenvolvimento, mas Putin também prefere usar alavancas econômicas, fazendo ameaças com o petróleo. Os EUA, porém, estão enrascados no Iraque e no Afeganistão, alienados de grande parte do mundo e esgotados por crises econômicas. A história está de volta, mas não necessariamente do nosso lado. *Bill Keller é colunista do jornal New York Times

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