
05 de março de 2017 | 05h00
Em novembro de 2004, cobri o enterro do líder palestino Yasser Arafat em Ramallah, na Cisjordânia. Perguntei aos palestinos nas ruas o que Arafat representava para eles. A resposta padrão era “el rais” - o líder. Longe das ruas, um dirigente palestino que eu conhecia havia 12 anos me disse em seu gabinete que Arafat não tinha um substituto, e isso era uma boa notícia: ele representara um papel muito importante, de colocar a causa palestina na agenda internacional, mas sua morte era a oportunidade para os palestinos construírem instituições no lugar da dependência de um homem-símbolo.
Infelizmente, isso não ocorreu. O Estado palestino, que afinal culminaria a construção daquelas instituições, não se concretizou. Mas, para mim, ficou a lição. Muitas vezes me perguntam por que gosto de cobrir conflitos, e aqui está a resposta: nos momentos extremos, conceitos que nas situações normais parecem abstratos, até vazios, ganham concretude.
Uma vitória de Trump na Ásia
Como quando, na guerra do Iraque, em 2003, eu me sentei com o falecido Awni al-Dayri na sala de espera da embaixada do Brasil em Bagdá. Funcionário da embaixada, ele havia acabado de defendê-la, com dois guardas armados de fuzis, de saqueadores que a tentaram invadir. “Quando a ordem da civilização se acaba, e se instala a selvageria, a barbárie, é muito difícil de reverter”, foram mais ou menos as palavras dele.
Como o ar que respiramos, o “acordo de cavalheiros” no qual se baseiam a civilização, a ordem, a democracia e as instituições só se revela em toda a sua concreta imprescindibilidade quando nos falta.
O aumento do fluxo da informação e do grau de exigência dos cidadãos, e a incapacidade de muitos políticos em acompanhar essa evolução, tanto no plano da moral quanto no da qualidade da gestão, levaram a uma crise de credibilidade dos partidos e do próprio sistema democrático. Os eleitores buscam desesperadamente alternativas fora da política tradicional, e elegem candidatos como Donald Trump.
Na Europa, movimentos nascidos de manifestações de rua, como o Podemos na Espanha, o 5 Estrelas na Itália e o Syriza na Grécia disputam o espólio dos partidos tradicionais. Na França, as pesquisas indicam que o segundo turno pode ser disputado entre dois candidatos de fora dos partidos tradicionais: Marine Le Pen da Frente Nacional e Emmanuel Macron do En Marche!
Desde que Donald Trump emergiu, temos tido, todas as semanas, evidências das implicações dessa, digamos assim, anomia, ou fuga das regras da política. A última crise envolve o secretário de Justiça dos Estados Unidos, Jeff Sessions, cujo cargo acumula as funções equivalentes às de procurador-geral da República e de advogado-geral da União.
Sessions se declarou impedido de atuar em investigações relacionadas com a campanha presidencial do ano passado, depois que o jornal Washington Post revelou que ele mentiu durante sua sabatina no Senado, ao afirmar, sob juramento, que não tivera contatos com o governo russo, quando na verdade se reuniu duas vezes com o embaixador Serguei Kislyak.
O tema da interferência russa na eleição já levou à queda do conselheiro de Segurança Nacional, general Michael Flynn, por também ter mentido sobre suas conversas com o embaixador. As relações promíscuas da equipe de Trump com o governo russo, assim como a mistura de interesses empresariais pessoais com o exercício do poder, são expressões desse afrouxamento das normas.
O clima de vale-tudo é tão avassalador que a imprensa americana reagiu com um “ah, então há um limite” quando Milo Yiannopoulos, editor do site Breitbart - fundado por Steve Bannon, estrategista de Trump - teve de renunciar ao cargo por haver defendido a pedofilia.
Muito aquém da criminosa atitude desse sujeito, no entanto, existem limites que não deveriam ser atropelados. E é muito mais fácil destruir do que reconstruir o delicado tecido dos direitos e deveres.
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