O desafio de Hillary

A noção de que Trump seria um adversário fácil parece cada vez mais distante

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colunista convidado
Foto do author Lourival Sant'Anna
Por Lourival Sant'Anna
Atualização:

A morte do negro Keith Lamont Scott, alvejado na terça-feira por um policial em Charlotte, Carolina do Norte, pode reacender os ressentimentos do eleitorado negro com relação ao ex-presidente Bill Clinton e prejudicar a candidatura de sua mulher, Hillary, à Casa Branca. Clinton aprovou no Congresso, em 1994, a Lei de Controle do Crime Violento e de Imposição da Ordem, o mais abrangente conjunto de medidas na área de segurança pública da história dos EUA.  O pacote colocou mais 100 mil policiais nas ruas do país, aumentou as penas relacionadas a drogas e gangues. Além disso, para conter o déficit público herdado dos republicanos, Clinton fez cortes nos benefícios sociais, que somaram US$ 55 bilhões em seis anos. Muitos eleitores negros consideram que a minoria foi a mais prejudicada por essas medidas, já que coincidem de ser os mais pobres e também os que são mais frequentemente abordados pela polícia, resultando muitas vezes em desfechos trágicos como o de Charlotte. Segundo levantamento do jornal The Washington Post, ao menos 702 pessoas foram mortas pela polícia este ano, das quais 163 eram negras. Essa fatia representa 23% do total, quase o dobro da proporção de negros na população americana: 13%. De 2014 para cá, 12 mortes resultaram em protestos e confrontos com a polícia.  No dia 15, uma policial matou um negro desarmado em Tulsa, o que também provocou protestos inicialmente. Mas a condução do caso pela polícia de Oklahoma foi bem diferente: ela imediatamente divulgou o vídeo da operação (todas as ações policiais são filmadas), admitiu que a vítima não estava armada e a policial responderá por homicídio. Essas medidas acalmaram a comunidade. Em contraste, no caso de Charlotte, a polícia alega que Scott estava armado e representava ameaça iminente para os policiais, enquanto que sua mulher e outras pessoas presentes garantem que ele trazia um livro e caminhava para trás com as mãos abaixadas, quando foi alvo de quatro disparos.  A polícia rejeita divulgar o vídeo enquanto não concluir as investigações, e o exibiu apenas para os parentes e advogados. A mulher dele, Rakeyia, que havia ido carregar seu celular enquanto o casal esperava o filho que vinha em ônibus escolar, também filmou a cena, mas carros tamparam a visão no momento em que Scott foi alvejado. No filme dos policiais, há um objeto no chão que eles afirmam ser o revólver de Scott; no de Rakeyia, não há nada no lugar. Detalhes assim alimentam desconfianças da comunidade, que realizou violentos protestos por três noites (em que um homem foi morto), contidos na sexta-feira pela presença ostensiva da Guarda Nacional. O episódio é mais um problema para a candidatura de Hillary. Sondagens feitas por pesquisadores democratas mostram que muitos eleitores negros, principalmente os mais jovens, não se sentem estimulados a sair para votar nela no dia 8 de novembro. Donald Trump percebeu a janela de oportunidade e tem tentado atrair o voto negro. “Olhem como as comunidades afro-americanas estão sofrendo sob o controle democrata”, disse ele em um comício em 19 de agosto em Dimondale, no Estado do Michigan, para uma plateia branca. “Para eles, eu digo o seguinte: ‘O que vocês têm a perder tentando algo novo, como Trump?’” Don King, o empresário negro do boxe, entrou em sua campanha na quarta-feira.  O temor dos democratas não é o de que os negros votem em massa em Trump. Até porque o candidato defendeu na mesma quarta-feira as revistas preventivas, como forma de combate à criminalidade – o tipo de política que afastou os eleitores negros dos Clintons. O receio é o de que o nível de comparecimento dos negros volte aos patamares históricos, de 50% em 2000 e 60% em 2004, quando os democratas foram derrotados. A possibilidade de eleger o primeiro presidente negro da história, em 2008, elevou esse índice para 70% – superando ligeiramente o do eleitorado branco.  Hillary não tem como mudar o passado, e tem demonstrado mais habilidade para atacar Trump do que para articular propostas simples, claras e diretas, que engajem o eleitorado. Sua relativa honestidade intelectual tem sido um empecilho, em face do descompromisso de Trump com os fatos. A disposição de Trump de parecer mais razoável e de convergir – ainda que do seu modo errático – para a linha do Partido Republicano começa a lhe render frutos, como o apoio, declarado na sexta-feira, do senador texano Ted Cruz, seu principal rival nas primárias.  A noção de que Trump seria um adversário fácil parece distante, neste momento. A média das pesquisas do voto popular confere 46% a Hillary e 43% a Trump, enquanto no colégio eleitoral a margem da democrata se estreitou drasticamente, para 6 votos (272 a 266), quando se incluem os Estados com disputas acirradas. Para muitos, a dura realidade torna a fantasia mais sedutora.

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