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O eclipse da razão britânica

A proposta de saída da UE colocada por Cameron não reflete interesses nacionais, mas a disputa interna na Grã-Bretanha

Por JOSCHKA FISCHER
Atualização:

Quando submetida a uma tensão excessiva, uma corrente tende a se quebrar no elo mais fraco. Em termos figurados, o mesmo se aplica à União Europeia. O mundo todo supunha, naturalmente, que o processo de desintegração da UE teria de começar no sul da Europa assolado pela crise (pela Grécia, particularmente). Mas, como o primeiro-ministro britânico acaba de demonstrar, é muito provável que a corrente europeia se quebre não em seu elo mais fraco, mas no mais irracional. A Grã-Bretanha - pátria do pragmatismo e do realismo, país de princípios irremovíveis e de uma adaptabilidade sem par, que abriu mão do seu império depois de defender com sucesso a liberdade da Europa contra a Alemanha nazista - perdeu o rumo. Mais precisamente, foi levada à deriva pela fantasia ideológica do Partido Conservador, segundo o qual alguns poderes da UE podem e devem ser devolvidos à soberania britânica. Os interesses nacionais do país não mudaram e nenhuma alteração fundamental na UE conspirou contra tais interesses. O que mudou foi a política interna, com um primeiro-ministro demasiado fraco para controlar seus cerca de cem parlamentares de segundo escalão (vamos chamá-los de "High Tea Party") na Câmara dos Comuns, e um establishment conservador temeroso da ascensão do Partido da Independência da Grã-Bretanha, que poderia custar aos conservadores um número de votos à direita suficiente para dar aos trabalhistas uma vantagem eleitoral. Cameron declara que não quer que a Grã-Bretanha deixe a UE. Entretanto, sua estratégia - a "renegociação" de sua participação na UE, seguida por um referendo britânico sobre um eventual novo acordo - é o produto de duas ilusões: a primeira, é que ele poderá garantir um resultado positivo e a segunda, que a UE pode e está disposta a dar-lhe as concessões que ele quer. Na realidade, há uma boa razão para acreditar que esse processo adquiriria uma dinâmica própria, possivelmente levando a uma saída indesejada da Grã-Bretanha da UE. O que representaria um grave prejuízo para o bloco, enquanto, para os britânicos, esse tropeço histórico seria um verdadeiro desastre. Embora a Grã-Bretanha com certeza conseguiria sobreviver fora da UE, a qualidade da sua sobrevivência seria uma questão bem diferente. A saída da Grã-Bretanha da UE prejudicaria profundamente os interesses econômicos do país, pois esse perderia tanto o mercado unificado quanto o papel de Londres como centro financeiro. Também comprometeria seus interesses geopolíticos, tanto na Europa (onde ironicamente ela é favorável à ampliação da UE) quanto no mundo todo, em sua posição global e em seu relacionamento especial com os Estados Unidos (que deixaram clara sua preferência por uma Grã-Bretanha europeia). Infelizmente, o desempenho de David Cameron em matéria de política europeia não inspira confiança em sua capacidade de administrar um resultado diferente. Quando, em 2009, ele ordenou aos membros conservadores do Parlamento europeu que deixassem o Partido Popular Europeu, o agrupamento de forças políticas europeias de centro-direita, ele simplesmente privou os tories (conservadores) - hoje relegados a se colocar ao lado dos sectários e dos obscurantistas - de toda e qualquer influência no Parlamento Europeu. Enfraquecendo a posição da Grã-Bretanha no seio da UE, ele acabou fortalecendo os eurocéticos do seu partido. Magia. Embora Cameron devesse saber por sua amarga experiência o que se prefigura, aparentemente ele abandonou toda análise racional. De fato, a convicção de que a UE renegociaria os termos da participação da Grã-Bretanha - pressupondo, ainda, que a Alemanha não faria nenhuma objeção a isso - beira o pensamento mágico. Esse precedente poderia ser explorado pelos outros Estados membros, o que significaria o fim da UE. Com o devido respeito à Grã-Bretanha, o desmantelamento da UE como preço a ser pago por sua contínua presença no bloco é uma ideia absurda. Cameron deveria admitir que sua estratégia não pode ser permitida. No meio tempo, os tories correrão o risco de perder o rumo numa questão fundamental - a reforma das relações entre a zona do euro e os membros da UE que não adotaram a moeda comum - se tentarem usá-lo como alavanca para renegociar os vários tratados europeus. A Grã-Bretanha sabe que a sobrevivência do euro exige uma integração política muito mais sólida, além do que, o papel de Londres como centro financeiro - tão importante para a Grã-Bretanha quanto para a França é a indústria nuclear, e a indústria automotiva é para a Alemanha - seria gravemente prejudicado caso o euro fracassasse. Mesmo que ninguém espere que os britânicos adotem o euro no curto prazo, a liderança política na UE exige perspicácia para levar em consideração os interesses fundamentais do próprio país e os dos outros membros sem recorrer a ameaças. Isso exige a devida compreensão desses interesses e uma disposição a cooperar com base na confiança mútua, o que deveria ser ponto pacífico na família europeia. Os discursos, particularmente os dos líderes das grandes nações, podem ser úteis, irrelevantes ou perigosos. O discurso sobre a situação da Grã-Bretanha na Europa, que Cameron planejou durante muito tempo, foi adiado várias vezes. Talvez ele devesse ter considerado esse fato um sinal de que teria de refletir sobre sua posição. Ainda pode fazê-lo, antes que seja tarde demais. O melhor ponto de partida seria uma releitura do famoso discurso de Winston Churchill em Zurique em 1946. "Devemos criar uma espécie de Estados Unidos da Europa", instou o maior estadista britânico do século 20. E essa continua sendo, até hoje, a nossa tarefa - e da Grã-Bretanha. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

* É ex-ministro do Exterior e ex-vice-chanceler da Alemanha desde 1998 a 2005, foi um dos líderes do Partido Verde Alemão por quase 20 anos

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