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É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais. Escreve uma vez por semana.

Opinião|O fim da guerra

O que de melhor outros países podem fazer é manter a interlocução com o Taleban

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Atualização:

Muitos perguntam o que “o mundo” pode fazer para diminuir o sofrimento dos afegãos. A tragédia do Afeganistão se deve, em parte, às interferências do mundo. Mas existem coisas que podem ser feitas. O primeiro passo é entender como se chegou até aqui.

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No século 19, a disputa por influência sobre essa região entre os impérios russo, ao norte, e britânico, ao sul (hoje Paquistão e Índia), recebeu o nome de “o grande jogo”. O Afeganistão fica entre os ricos depósitos de minérios, gás e petróleo da Ásia Central e o acesso ao Oceano Índico, por meio do Paquistão, e ao Golfo Pérsico, através do Irã. Ele próprio tem gás e minérios. O país nunca foi colonizado, graças ao espírito guerreiro de seus povos, ajudado pelo relevo montanhoso. Quem chegou mais perto disso foi o império britânico, que entre 1879 e 1919 assumiu sua defesa e política externa. 

Com a Revolução Russa de 1917, os soviéticos passaram a exportar a ideologia socialista. A sociedade afegã é desde então dividida entre a corrente conservadora islâmica, concentrada na zona rural, onde vivem três quartos da população; e correntes moderadas e liberais. Entre os anos 50 e 70, o país tirou proveito da Guerra Fria, recebendo ajuda econômica tanto dos EUA quanto da URSS. Em 1978, um golpe instalou um governo pró-soviético, que passou a enfrentar rebelião popular composta por islamistas e liberais pró-capitalistas. 

O que de melhor outros países podem fazer é manter a interlocução com o Taleban Foto: Zabi Karimi/AP

Para conter esse levante, a URSS invadiu o país no ano seguinte. Seguiu-se uma guerra de dez anos, que atraiu mujahedin (combatentes islâmicos) do mundo inteiro, para fazer a jihad contra o império secular, com apoio americano, paquistanês, saudita e iraniano, entre outros. A Al-Qaeda foi criada em 1988, em Peshawar, do lado paquistanês da fronteira.

Com a derrota soviética, o país ficou dividido entre áreas de influência de grupos mujahedin. O Paquistão desejava um Afeganistão sob um governo único e aliado. O serviço secreto paquistanês, ISI, recrutou então os “taleban” (estudantes) dos internatos religiosos na fronteira, órfãos e filhos de refugiados da guerra afegã, treinou-os, armou-os e patrocinou a invasão do Afeganistão, em 1994.

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Em 1996, sob pressão americana e saudita, Osama bin Laden foi expulso do Sudão, onde estava desde 1992, e voltou para o Afeganistão. O ISI intercedeu para que o Taleban, que acabava de tomar Cabul, abrigasse a Al-Qaeda. Os atentados de 2001 levaram os EUA a invadir o Afeganistão e a ocupá-lo por 20 anos. Nesse período, vários projetos de entidades financiadas por americanos e europeus reabriram espaço para as fatias liberais da sociedade afegã. Dos 9,5 milhões de estudantes, em 2020, 39% eram meninas, o que indica adesão substancial das famílias afegãs ao direito fundamental das mulheres de estudar.

O Afeganistão sucumbiu ao Taleban, não porque a maioria o apoie, mas porque os 300 mil militares afegãos treinados e equipados pelos EUA, ao custo de US$ 83 bilhões, entregaram-se no final sem lutar. Antes disso, 60 mil policiais e militares morreram em confronto com os cerca de 70 mil taleban. 

Mas a saída abrupta dos EUA, combinada com o desvio, pelos comandantes, dos soldos e das verbas para famílias de militares mortos, e a determinação dos taleban de morrer em combate, derrubaram o moral da tropa. Os funcionários afegãos desviaram parte do US$ 1 trilhão investido pelos EUA nesses 20 anos, para se enriquecer e apaziguar os conflitos internos. O Afeganistão é um mosaico de clãs em constante disputa por terras e outros recursos. 

O que de melhor outros países avançados podem fazer agora é manter a interlocução com os taleban, e incentivá-los a salvaguardar pelo menos parte das conquistas sociais desses anos. Mas não tentar impor à força. A história mostra que isso não funciona com os afegãos.* É COLUNISTA DO ESTADÃO E ANALISTA DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS

Opinião por Lourival Sant'Anna

É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais

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