O fim de 52 anos de guerra na Colômbia: Ausência do Estado ameaça acordo de paz

Moradores de Planadas temem que quadrilhas assumam vazio deixado pelas Farc

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Foto do author Fernanda Simas
Por Fernanda Simas , Planadas e Colômbia
Atualização:

PLANADAS, COLÔMBIA - Falar do acordo de paz entre o governo de Juan Manuel Santos e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) na região conhecida por ser o berço da guerrilha não é motivo de alegria para todos. Os moradores de Planadas, no Departamento (Estado) de Tolima, estão dividos entre votar a favor ou contra o acordo no plebiscito de hoje, mas concordam em uma coisa: se não houver forte presença do Estado a partir de agora, na cidade e povoados vizinhos, outros grupos criminosos ocuparão o vazio de poder deixado com a saída da guerrilha mais antiga da América Latina.

“O acordo é um engano para o povo, para os camponeses. As pessoas estão iludidas, apenas veem as festas pelo processo de paz. Para mim, quando as Farc estavam aqui, as coisas funcionavam melhor. Agora, se vê uma grande quantidade de gente usando drogas, as coisas estão piores”, afirma Marta, dona de uma barraca de salgados na praça da cidade, ao redor da qual estão os principais pontos do local: prefeitura, delegacia e igreja. Não há um grande hospital no local, por exemplo.

Jovem rebelde das Farc posa com sua Kalashnikov Foto: Federico Rios Escobar/The New York Times

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A região de 28 mil habitantes – 21 mil vivem na área rural – presenciou o nascimento das Farc em 1964, quando no dia 27 de maio, em Marquetalia, que fica dentro de Planadas, um grupo de liberais armados liderados por Pedro Antonio Marín, conhecido como Manuel Marulanda, o “Tirofijo”, tentou impedir o avanço militar contra uma comunidade camponesa autônoma. Na época, Marquetalia era uma zona de autodefesa camponesa formada sob a influência dos comunistas no sul de Tolima e o ataque militar resultou na formação de diversos focos de guerrilha.

“Aqui era o local onde os grupos guerrilheiros ‘governavam’. Há muitas pessoas que se sentiam mais protegidas com eles, porque eles tinham uma determinada forma de executar as leis. Não é segredo que aqueles que lhes desrespeitavam eram mortos. Então, é normal que haja a impressão de que a polícia não faz nada. Capturamos as pessoas e cumprimos as leis, mas a diferença é que eles matavam”, explica o tenente Anderson Arana, chefe da Zona Veredal de Transição à Normalidade da região. Ele espera que, com o avanço do processo de paz, as pessoas “percam o medo.”

Alguns moradores, embora reconheçam ser necessária uma forte atuação do Estado para garantir que outros grupos criminosos não ocupem o espaço deixado pelas Farc, acreditam que o acordo “é a chance que os camponeses precisavam”. É o caso de Jorge Ardila, de 59 anos. “Essa é uma grande oportunidade. Tomara que eles cumpram tudo o que foi prometido e as coisas mudem. Essa é uma oportunidade para os colombianos e quem deve dar o primeiro exemplo é o Estado.”

Atualmente desempregado, Ardila é conhecido na cidade por ser o filho do enfermeiro de Tirofijo. Ele perdeu dois irmãos – mortos pelas Farc em 1993 e 1994 –, mas afirma não guardar mais rancor. “Eu perdoei, ou nunca seria feliz, ficaria em paz, mas não esqueci. Esse processo vale a pena se todos mudarmos”, explica o colombiano, lembrando que votará em favor do acordo. 

Nas pequenas ruas da cidade, o cenário de uma noite para outra mudou radicalmente enquanto a reportagem do Estado esteve no local. Em um dia de festa, crianças corriam pela praça apertando as mãos de soldados – há um batalhão do Exército no local –, os adultos dançavam e davam risadas enquanto o locutor do evento chamava algumas pessoas para cantar no palco em comemoração à paz. A festa ocorreu um dia depois da assinatura do acordo de paz em Cartagena de Índias. 

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Na noite seguinte, sem evento organizado pelo governo, a praça estava mais vazia e as pessoas sentadas em rodas perto das barracas que vendem comidas criticavam o acordo. “Não vai mudar nada, apenas vai haver a troca de um grupo criminoso por outro. É cansativo, claro que queremos a paz, temos um país lindo, com muita biodiversidade, mas é preciso fazer as coisas certas”, afirma o motorista de caminhão Ander Acevedo, de 28 anos. 

“Em três ou quatro anos essa paz virará uma guerra de novo. Não temos apenas as Farc aqui, existe o ELN (Exército de Libertação Nacional), os grupos criminosos. Eles dizem que entregarão as armas, mas duvido que vão entregar tudo o que têm”, acrescenta Diego, de 30 anos.

Os dois afirmaram que votarão contra o acordo, mas acreditam que ele será aprovado. Quando eles nasceram, as Farc já existiam e já ocupavam a região onde hoje vivem e Acevedo lembra que a guerrilha era um tema recorrente na escola. “Era o principal assunto.” 

Para Diego, a guerra já teria acabado se o governo de Santos tivesse continuado as políticas de seu antecessor e padrinho político, Álvaro Uribe, hoje senador e líder da campanha contra o acordo. “Uribe ensinou muito a Santos, que agora lhe apunhala pelas costas. Esperamos que com as Farc não ocorra o mesmo e não deem um golpe contra Santos.”

Veja abaixo: Zonas onde Farc ficarão concentradas estão prontas

Questionados sobre a ideia de ter o grupo que afirmaram trazer segurança à região em cargos políticos, os dois jovens ficaram em dúvida, mas no fim disseram que a guerrilha na política pode se tornar corrupta. “Claro que no começo terão muitas ideias para os povos mais pobres e afetados pelo conflito, mas, como sempre ocorre na política, quando eles tiverem a oportunidade de ganhar algo a mais o farão. Se a política da corrupção não mudar, nada vai mudar”, argumentou Acevedo. “Quando as Farc estavam aqui, se alguém tinha um problema eles (guerrilheiros) iam até o local e resolviam. Agora, se entram para a política é que acaba tudo”, acrescenta Marta.

Mudanças. Para o tenente Arana, a situação de repúdio ao sistema policial deve mudar com a aplicação dos acordos de paz. “As pessoas, muitas vezes, ficam com medo de nos acompanhar porque temem a represália deles (Farc). Agora, com esse processo de paz, acreditamos que esse medo deve desaparecer e isso é o que fazemos nas comunidades daqui, mostramos que não somos apenas repressão, mas também prevenção e educação. Nós não somos guerra”, disse, acrescentando que o policiamento e a presença militar aumentaram na cidade desde o início das negociações de paz.

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Pelas ruas da cidade, sinais de apoio ao acordo estão estampados. As casas têm folhetos com a frase “a paz, SIM, é contigo”, nos cruzamentos, faixas com os mesmos dizeres e o “voto sim” estão penduradas. Para Ardila, a situação é boa e mudanças já podem ser vistas. “Vejo com alegria esse processo. Já não escutamos que guerrilheiros estão ameaçando as pessoas. O que ouvimos são casos de violência comum, mas não ouvimos mais sobre a guerrilha.” 

A mesma situação é vista em Gaitania, outra pequena área urbana na região de Planadas, também muito afetada pelo conflito e onde vivem, segundo dizem moradores, alguns parentes de Tirofijo. “As Farc dominaram o local pela falta do Estado, mas há cerca de três anos a situação está mudando, vivemos mais tranquilos”, afirma o presidente da Junta Nacional de Gaitania, Raúl Durán. Segundo ele, as pessoas no local concordam com o acordo. “Espera-se que ele traga benefícios. A população daqui quer paz.”

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