PUBLICIDADE

O fim do antiamericanismo

Reaproximação entre EUA e Cuba põe velhas crenças ideológicas em xeque

Por ENRIQUE KRAUZE
Atualização:

Cuba tem sido o epicentro do antiamericanismo na moderna América Latina. Como ideologia política, a cubana nasceu durante a Guerra Hispano-Americana de 1898, atingiu seu auge com a vitória da Revolução em 1959, e agora, diante da medida singularmente corajosa de Barack Obama, começa seu declínio final. O acordo restabelecendo as relações diplomáticas entre EUA e Cuba vai encontrar sérios problemas: a oposição dos legisladores conservadores americanos e também o caminho tortuoso na direção de liberdades políticas e civis em Cuba (a recente detenção de blogueiros que tentam ampliar a liberdade de expressão em Cuba é um mau augúrio). Mas o acordo foi aclamado por toda a América Latina. Com seu anúncio histórico no dia 17, Obama começou a desmantelar uma das paixões ideológicas mais profundamente arraigadas no continente sul-americano. Nas suas origens distantes, o antiamericanismo tem um caráter religioso: o medo por parte de grupos conservadores e da Igreja Católica diante da penetração da crença e da cultura protestantes. Para o México havia, além disto, a agressão da guerra americana de expansão territorial de 1846 a 1848. Entretanto, os liberais que governaram o México na última metade do século 19 continuaram admirando os EUA. Suas ideias democráticas e republicanas eram mais fortes do que os sentimentos nacionalistas, algo compartilhado pelas elites progressistas por todo o continente. Mas a guerra de 1898 uniu os países da América hispânica contra os EUA e basicamente os reconciliaram com a Espanha, da qual se tornaram independentes. Cuba foi a exceção. Em consequência da guerra, os liberais latino-americanos abrigavam um sentimento similar àquele que muitos marxistas vivenciaram após a guerra do Muro de Berlim. Para muitos, a independência de Cuba garantida pela guerra funcionou apenas como uma conversão de colônia espanhola em possessão americana. Foi então que os liberais da América Latina começaram a se juntar com católicos, outros grupos conservadores e socialistas para criar um nacionalismo latino-americano centrado na oposição militante aos EUA. Entre 1898 e 1959, com algumas exceções, o saldo político, diplomático e militar dos EUA na América Latina era totalmente desastroso. Em 1913, o embaixador americano Henry Lane Wilson, juntamente com conservadores mexicanos, tramou a derrubada (e eventualmente a morte) de Francisco Madero, o primeiro presidente democraticamente eleito do México, um episódio nefasto que foi prenúncio de outros abusos: chegada dos Marines, ocupação do território, apoio a golpes militares e a insistente presença de imensas empresas americanas. Nos EUA, a diplomacia para promover interesses de grandes empresas era vista como normal. Para latino-americanos, era mostra intolerável de cobiça. A região reagiu com uma explosão de nacionalismo, que os presidentes americanos conservadores do período entre as duas guerras mundiais trataram como mostra de comunismo. Em Cuba, as conexões entre interesses comerciais americanos e política permaneceram intactas e à plena vista. No início da Guerra Fria, para muitos pensadores, a pobreza e a desigualdade observadas na América Latina eram decorrência da presença dos interesses americanos e eles viam no socialismo, expressado nas várias formas marxistas, uma alternativa legítima. Os EUA continuaram a apoiar ditaduras autoritárias, como os Somozas na Nicarágua. A Revolução Cubana cumpriu essa profecia e deu início a um novo ciclo de intenso antiamericanismo. A Aliança para o Progresso de Kennedy e as medidas conciliatórias adotadas por Jimmy Carter não conseguiram contrabalançar a acrimônia provocada pelos governos republicanos. O envolvimento da CIA no golpe contra Salvador Allende no Chile ou os crimes do governo Reagan nas "guerras sujas" da América Central incitaram gerações de jovens latino-americanos a imitar Che Guevara e Fidel Castro. O ódio ideológico do "imperialismo ianque" tornou-se estandarte em muitas universidades. A fúria assim provocada foi a arma mais eficaz de sobrevivência do regime repressivo e ditatorial cubano. Em 1989, o Muro de Berlim caiu e, surpreendentemente, governos democráticos foram eleitos em vários campos de batalha latino-americanos, especialmente no Chile, na Nicarágua e em El Salvador. Os marxistas ficaram órfãos ideologicamente e o espaço foi aberto para governos liberais e social-democratas. O antiamericanismo na região jamais desaparecerá, mas vem saindo de moda e a decisão de Obama certamente acelerará sua morte. Ele foi mantido artificialmente pelo histrionismo incendiário de Hugo Chávez na Venezuela, mas ficou mais difícil ocultar o anacronismo do discurso chavista contra o "império" que é o principal comprador do petróleo venezuelano. Somente o grande obstáculo do boicote americano a Cuba permaneceu como uma força contenciosa e obsoleta. Ao restabelecer as relações com Cuba, os EUA renegam seu "destino imperial" e recuperam grande parte da legitimidade moral necessária para defender os valores democráticos que levaram a sua fundação. A liberdade de expressão em Cuba é uma necessidade absoluta para seu sucesso. Nenhuma pessoa ou país é uma ilha isolada do mundo. A dinastia Castro manteve Cuba assim durante 56 anos. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

*Enrique Krauzeé é historiador de editor da revista literária Letras Libres

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.