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É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais. Escreve uma vez por semana.

Opinião|O impacto do Taleban

A maior fonte de renda dos agricultores é a papoula, matéria-prima do ópio

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Atualização:

O Taleban não poderia ter voltado ao poder se não tivesse sido capaz de recrutar combatentes e de receber apoio de parte da população. Esse é talvez um dos aspectos mais intrigantes da queda de Cabul: quem gosta dos taleban no Afeganistão, e por quê? Estimava-se que os taleban somavam 70 mil combatentes antes de retomar o Afeganistão. Na minha estadia de cinco dias no país, entre sábado e quarta-feira, tive contato com muitos deles, e os observei detidamente. Os soldados taleban têm ao redor de 20 anos. Alguns, menos até, com sua marca registrada, a barba, ainda incipiente. 

Combatentes do Taleban montam guarda em Cabul, no Afeganistão Foto: Wana via REUTERS

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Notando o orgulho solene com que carregam seus fuzis e cumprem suas funções, e conhecendo muito bem a zona rural do Afeganistão, na qual vivem três quartos da população, e da qual eles provêm, acredito ter compreendido o magnetismo exercido pelo Taleban sobre eles.

Aos 20 anos, todos nós nos perguntamos se teremos um lugar no mundo, se seremos valorizados e respeitados por algo que somos e fazemos. Tenho dois filhos nessa faixa de idade. Ambos trabalham o dia inteiro e estudam à noite. Os dois encontraram esse lugar na universidade e no trabalho. 

Para os jovens da zona rural do Afeganistão, esse lugar não existe. Em geral, os combatentes do Taleban são analfabetos funcionais. Decoraram versos do Alcorão em árabe, cujo significado desconhecem, e avançaram muito pouco na escola. Não têm perspectivas no campo nem condições ou qualificação para migrar para a cidade. A seu redor, veem homens chegando aos 30 anos sem poderem se casar, por falta de renda. 

Afegãos, como a maioria dos muçulmanos, não namoram. Se não se casam, vivem em privação sexual, apenas parcialmente satisfeita pela prática, bastante comum na zona rural do Afeganistão, do sexo entre homens e meninos. Sem se casar e ter filhos, seu status social é quase nulo. Daí os episódios de casamentos forçados nas cidades invadidas pelos taleban.

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Portar um fuzil representa a conquista da virilidade, simbolizada pelo formato fálico da arma. Ser reconhecido como um combatente da jihad, a guerra em nome de Alá, proporciona um status social elevado para uma parte desse povo profundamente religioso e guerreiro. Integrar um movimento de dimensão nacional, antes mesmo de tomar o poder, confere uma poderosa sensação de pertencimento.

Algo semelhante observei no interior colombiano, nos anos 90, entre os recrutas das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), nos militantes da Al-Qaeda no Iraque, na década de 2000, e entre os rebeldes líbios na Primavera Árabe, em 2011.

Os pais dos taleban são em geral pequenos agricultores, que não conseguem se erguer acima da sobrevivência sem apoio do governo, ausente nas últimas duas décadas de regime pró-americano. A melhor alternativa de renda para os agricultores afegãos é a papoula, matéria-prima do ópio e da heroína, dos quais o Afeganistão produz 80% do que é consumido no mundo. 

Dentro da divisão de tarefas na “construção da nação” entre Estados Unidos e seus aliados da Otan, coube ao Reino Unido conduzir programas de substituição de cultivos ilícitos, combinados com a repressão. A alternativa é impopular entre os agricultores, porque não chega perto da renda alcançada com a papoula.

Num extrato ainda inferior estão os kochis, os pastores nômades da etnia pashtun (a mesma dos taleban), que vagam pelo sul, oeste e norte do país, em busca de pastagem para seus rebanhos de ovelhas e cabras. Agricultores e nômades são a base de apoio popular e de recrutamento do Taleban, que cobra uma taxa pela produção de ópio e heroína, mas não pela papoula.

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Entrevistei em Cabul uma refugiada de 20 anos e três filhas, que deixou sua casa na Província de Takhar, no nordeste do Afeganistão, por causa da guerra. Ela está grávida de sete meses, mas não tem assistência médica nem dinheiro para voltar para casa. Mesmo assim, me disse que com a tomada do poder pelos taleban sua vida melhorou, porque a guerra acabou. 

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A perda de direitos não aflige a maioria das mulheres afegãs, porque seu papel nas famílias rurais não mudou nesses 20 anos entre o primeiro e segundo regime dos taleban. 

Já uma outra refugiada disse que sua vida piorou porque seu marido de 65 anos, um ex-soldado do Exército pró-soviético, que perdeu um pé defendendo o governo de Mohamed Najibullah (1987-92), deixou de receber a pensão com a chegada dos taleban ao poder.

Perguntei a um vendedor de roupas usadas para mulheres em um mercado de Cabul, de 50 anos, quando a vida dele tinha sido melhor: sob a ocupação soviética (1979-89), no primeiro regime taleban (1994-2001) ou nos 20 anos de governos pró-americanos. “A vida aqui nunca foi boa”, resumiu ele. A percepção das pessoas pobres acerca do Taleban é determinada pelo impacto de sua chegada ao poder sobre suas chances de sobrevivência. 

* É COLUNISTA DO ESTADÃO E ANALISTA INTERNACIONAL DA CNN BRASIL, QUE O ENVIOU AO AFEGANISTÃO

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Opinião por Lourival Sant'Anna

É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais

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