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O legado de Thatcher

Por Mac Margolis
Atualização:

Margaret Thatcher, morta na semana passada, deixou um legado político dos mais controversos, rachando as opiniões de Belfast a Belarus. Mas se há uma região no mundo em que a polêmica Dama de Ferro se tornou unanimidade, é a América Latina.Adoramos detestar a ex-primeira ministra britânica, a mulher mais influente da Europa no século 20. E nossa cólera pouco tem a ver com a ordem dela, na Guerra das Malvinas, de atacar o Belgrano, navio de guerra argentino, que foi a pique nas águas gélidas (e internacionais, dizem) do Atlântico Sul, levando 323 vidas. Para o consenso latino-americano, Thatcher encarnou a renovação do ultraconservadorismo gringo, dando-lhe asas mundiais. Defensora do capitalismo in natura, dedicou-se ao desmantelamento do adoentado Estado de bem-estar, tão querido quanto balofo e perdulário. Ao lado do americano Ronald Reagan, ninguém mais representou tão bem a reviravolta econômica do fim de século 20 do que Thatcher. O fato de que as ideias liberais dela tenham conquistado adeptos pelas Américas só aumenta a inconformidade latina.Considere a geleira patagônica com que muitos chefes de Estado da região externaram suas condolências. Da Argentina, não escapou nenhuma palavra, nem protocolar. Pêsames mesmo, apenas do Chile, por supuesto, o país das Américas que não apenas espelhou a política liberal de Thatcher, mas que a teria inspirado também. Já Dilma Rousseff confinou-se a "lamentar" o falecimento da baronesa inglesa. Mesquinharia? Afinal, sem Thatcher, que quebrou o teto de vidro da política machista da primeira liga das nações, seria concebível a Dilma presidente?Nada, enfim, como o esfuziante adeus para Hugo Chávez, que morreu em março, com lágrimas e loas continentais. "As transformações econômicas, sociais e políticas que conduziu, nos últimos 14 anos, na Venezuela, fizeram desse grande líder a mais importante referência da história daquele país e o projetaram em toda a América Latina e Caribe", disse Dilma.É um epitáfio no mínimo enviesado. A presidente brasileira, como boa parte da geração atual da liderança latina, chegou ao poder não pela via chavista mas ao reboque do vendaval político e econômico que Thatcher protagonizou. Privatizações, desregulamentação (parcial ou profunda), combate à inflação, comércio mais livre - eis a agenda política que refez as Américas e segue hoje definindo os termos do debate público.Thatcher foi a mais apaixonada - religiosa, atestam alguns - dos expoentes desse evangelho liberal. Sua dedicação foi às vezes impiedosa. Fez do coração tripas na sua missão de erradicar da economia os empecilhos e ineficiências. Mas como o plágio é o maior elogio, a força da Dama de Ferro vem da medida em que outros se inspiravam nela, mesmo quando negavam.Para Lula, afeito ao Estado Forte, o liberalismo é um palavrão. Não cansava de criticar Fernando Henrique Cardoso, laçando-lhe pedras montado na estrutura que herdou. O petista não reestatizou a Vale ou as empresas de telecomunicações, arrochou os juros sem pestanejar e não descuidou da inflação. Não foi diferente para o peruano Ollanta Humala e o uruguaio Pepe Mujica, ex-radicais epistolares que, para governar, se repaginaram como centristas e agora apanham da esquerda e sindicatos.Na geleia geral da política atual, faz falta a voz clara e indisfarçada de Thatcher. Desde o colapso financeiro de 2008 e a crise da maior economia capitalista do mundo, ninguém mais se diz liberal muito menos da direita. Pelo menos não em viva voz. Hoje, somos todos social-democratas.Esqueçam-se de que a conservadora Thatcher, tampouco, era tão fundamentalista quanto a diziam. Empenhou reformas radicais para sacudir a direita inglesa, um baronato sem ideias, e modernizar a economia, aleijada por ineficiências e impostos sem serviços correspondentes.Não mexeu com a saúde publica, pedra fundamental da sociedade britânica. Amiga do socialista François Mitterrand, mal tolerava o republicano George H. W. Bush. Chancelou uma lei para legalizar a união homossexual. Thatcher foi liberal por convicção, pragmática por necessidade. A política latino-americana deve a ela, mesmo que não assuma.

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