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O poder simbólico da visita do papa Francisco ao Iraque; leia a análise

Ida do papa ao país foi ainda mais marcante em razão do momento em que ocorreu, com o mundo ainda pressionado pela pandemia de coronavírus

Por Ishaan Tharoor
Atualização:

Os papas nem sempre almejaram a coexistência com os povos que viveram no território atualmente conhecido como Iraque. Em torno de 1263, o papa Urbano IV emitiu uma bula papal que dava boas-vindas a Hulagu Khan, um senhor da guerra mongol que o papa esperava converter ao cristianismo. Para entusiasmo dos observadores da cristandade, Hulagu e seus aliados abriam caminho nas maiores cidades do mundo islâmico com saques e assassinatos.

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A destruição de Bagdá realizada por seu exército foi tão completa que a arruinada sede do califado tardaria séculos para se recuperar. Após um outro ataque, como lição aos derrotados defensores de Mossul, Hulagu capturou o líder local, de acordo com um relato, e “amarrou-o firmemente dentro de uma pele fresca de carneiro e o deixou sob o sol, onde vermes o devoraram vivo ao longo de um mês, até ele morrer”.

Mas no domingo, último dia de uma visita ao Iraque revestida de história e simbolismo, o papa Francisco chegou aMossul como um autodenominado “peregrino da paz”, realizando a primeira visita papal a uma terra abundante em vestígios da antiguidade bíblica.

Primeiro-ministro Mustafa al-Kadhemi recebe o papa Francisco na capital, Bagdá Foto: IRAQI PRIME MINSTER'S OFFICE FACEBOOK PAGE / AFP

“Nosso encontro aqui hoje mostra que o terrorismo e a morte nunca têm a palavra final”, afirmou Francisco, em meio aos escombros de uma antiga igreja que poucos anos atrás foi usada como prisão e campo de treino de tiro pelos extremistas do Estado Islâmico. “Mesmo em meio à destruição do terrorismo e da guerra podemos ver, com os olhos da fé, o triunfo da vida sobre a morte.”

A ida do papa ao Iraque foi ainda mais marcante em razão do momento em que ocorreu, com o mundo ainda pressionado pela pandemia de coronavírus. “Ele está viajando em um momento em que outras personalidades de influência global estão quietas, com o objetivo de colaborar com a reconstrução de um país onde décadas de esforços falharam”, escreveram meus colegas. “Essa viagem representa uma demonstração de encorajamento para um país que tenta se recuperar do caos provocado pela invasão dos Estados Unidos e pela brutalidade do Estado Islâmico, um grupo que já prometeu ‘conquistar Roma’.”

Na sexta-feira, o papa foi à cidade sagrada de Najaf e participou de uma histórica reunião a portas fechadas com o gran-aiatolá Ali Sistani, proeminente líder religioso dos xiitas iraquianos. Posteriormente, de um palco montado diante de uma planície desértica em Ur - local que abrigou uma das mais importantes cidades-Estado da antiga Mesopotâmia e, segundo a tradição, onde nasceu Abraão, reverenciado por cristãos, muçulmanos e judeus - Francisco falou de tolerância, coexistência e interdependência entre comunidades religiosas. “Precisamos uns dos outros.”

Apesar de abrigar algumas das mais antigas comunidades cristãs e alguns dos mais antigos locais sagrados para o cristianismo, o Iraque viu sua população cristã encolher drasticamente ao longo das décadas mais recentes, um êxodo exacerbado pela ascensão do Estado Islâmico, em 2014. A violência contra minorias religiosas, incluindo yazidis e caldeus iraquianos, chegou a níveis de genocídio após a captura de Mossul pelos militantes. Eles também destruíram muitas das principais igrejas da cidade.

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A visita do papa foi uma celebração do histórico de pluralismo no Iraque, um legado que ele espera que persevere. “A diversidade religiosa, cultural e étnica que tem sido a marca da sociedade iraquiana há milênios é um recurso precioso do qual devemos nos valer, e não um obstáculo a ser eliminado”, afirmou Francisco em um discurso no palácio presidencial do Iraque.

Mas há também muito motivo para ceticismo em relação à visita do papa ao país. Algumas das prédicas de Francisco no Iraque ocorreram em salões abarrotados de gente, com pouca ventilação e na ausência de protocolos eficientes contra o coronavírus, levantando preocupações com a possibilidade de serem potenciais eventos superdisseminadores. E apesar de todas as mensagens virtuosas do papa, a realidade do país continua marcada por conflitos latentes, inimizades sectárias e amplo descontentamento popular com o governo.

Enquanto as autoridades iraquianas acionaram um gigantesco isolamento de segurança em torno da visita do papa, alguns iraquianos comuns se sentiram negligenciados diante de tal tratamento.

“Não permitiram que fôssemos a Ur porque somos apenas pessoas comuns”, afirmou aos meus colegas Haider Khuder, integrante do sindicato dos escritores da cidade de Nasiriyah, próximo a Ur, enquanto gesticulava na direção de detritos que impediam a circulação em uma rua de lojas que permaneciam fechadas. “Eles gastaram tanto dinheiro nessa visita e, ainda assim, não gastaram nada por aqui. Basta olhar ao seu redor."

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Outros estavam mais otimistas a respeito da possibilidade de a visita marcar o começo de um momento de reconciliação mais substancial. Falando aos iraquianos, o papa detém uma autoridade moral que talvez nenhum líder secular ocidental - especialmente os envolvidos no histórico recente de desventuras no Oriente Médio - poderia alcançar.

“Aqui no Iraque, a ocupação americana, seguida da violência da Al-Qaeda e depois pelos terroristas do Estado Islâmico - todos esses eventos consecutivos - contribuíram para a emigração de cristãos”, afirmou Rayan al-Kildani, controvertido líder de uma milícia cristã iraquiana (com apoio dos EUA), à agência de notícias Amwaj Media. A entusiástica recepção que o papa teve, insistiu ele, foi um sinal de que "os cristãos não querem emigrar, eles não querem deixar o Iraque”.

O patriarca católico caldeu, Louis Sako, um dos principais organizadores da viagem e único cardeal católico do Iraque, afirmou ao Financial Times esperar que a mensagem do papa leve a uma “realidade de bondade”.

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De outro modo, “continuaremos desolados e destruiremos uns aos outros e este país, que é berço das civilizações acádia, suméria, islâmica e cristã. E qual será o resultado?”, disse. “Nenhum.”

Sako tem insistido para que o pontífice viaje ao Iraque desde 2013. Mas então surgiu o Estado Islâmico, desatando horrores indizíveis e profanando locais sagrados para todas as fés abraâmicas. “Isso nunca tinha acontecido na história do cristianismo e do islamismo”, afirmou Sako em 2014. “Nem Genghis Khan nem Hulagu fizeram isso.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL 

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