O presidente Putin ao telefone

Iinteresse pela preservação das cegonhas e dos tigres da Sibéria esconde alguém superficial, preocupado consigo mesma

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Intimamente, eu estava convencida de que tinha conseguido entender a personalidade de Vladimir Putin. Passei anos estudando suas entrevistas, seus discursos e suas falas improvisadas. O resultado foi um indivíduo sem graça e sombrio. Segundo alguns, entretanto, ele tem uma dimensão secreta. Outros afirmam que ele tem certo charme. Não vi nenhuma evidência disso. Por outro lado, nunca havia conversado com o homem. Como jornalista, aparentemente, eu havia sido incluída numa lista de proscritos pelo Kremlin desde o início do seu reinado - por isso, não conseguia as credenciais para uma entrevista coletiva. Então, na semana passada, briguei com ele. Havia sido demitida do cargo de editora da Vokrug Sveta, uma conhecida revista de ciência, por ter me recusado a enviar um repórter para cobrir o voo de asa delta de Putin ao lado das cegonhas da Sibéria ameaçadas de extinção. Na manhã seguinte, minha sensação foi de ressaca e de desorientação. Meu telefone tocou e uma voz masculina me pediu para aguardar. Fiquei ouvindo o silêncio do outro lado da linha durante dois minutos, furiosa. Uma segunda voz masculina falou: "Não desligue. Vou passá-la para outra pessoa". Explodi: "Não pedi para falar com ninguém! Por que preciso aguardar? Com quem vou falar? Quer se identificar?" "Putin, Vladimir Vladimirovich", disse a voz do presidente. "Ouvi dizer que você foi demitida", prosseguiu, enquanto eu procurava desesperadamente formular uma frase, prevendo também que poderia se tratar de um trote. "Disseram que eu, involuntariamente, teria sido o motivo. Mas saiba que minhas iniciativas para a preservação da natureza nada têm a ver com a política. Infelizmente, é difícil separar as duas coisas para uma pessoa na minha posição." Essa maneira de falar era uma raridade em Putin: pedir simpatia ao mesmo tempo em que denegria sutilmente a função de presidente. "Então, se você não tiver objeções, proponho que a gente se encontre e fale sobre isto", ele disse. "Nenhuma objeção. Mas como vou saber que não se trata de um trote?" Putin prometeu que eu receberia um telefonema marcando o encontro. Uma semana mais tarde, lá estava eu esperando Putin no Kremlin. Ele costuma chegar sempre atrasado nos encontros - em média, a espera chega a quatro horas, mas seis ou mais não são tão incomuns. Eu levara um livro para ler. Queria ter levado meu próprio livro, a biografia não autorizada de Putin, mas amigos e familiares me pediram que não fizesse isto. Estava lendo o brilhante The Birds of Heaven: Travels with Cranes, de Peter Matthiessen. Na introdução, Matthiessen cita um vizinho de Long Island que pergunta: "Quem é que se importa com as cegonhas?" E explica: "Como inúmeras pessoas em muitos continentes, eu me preocupo enormemente com cegonhas e tigres, não só por se tratar de criaturas magníficas e comoventes, mas também como arautos e símbolos de tudo o que estamos perdendo". O que eu me pergunto em relação à aparente preocupação de Putin com as cegonhas e os tigres - e também com os ursos polares e leopardos da neve - é se ele não estaria interessado neles como símbolos do seu próprio poder. Ele escolheu os maiores predadores e as maiores aves voadoras para dominar, para mostrar que não é o presidente somente na frente das câmeras, mas é também o rei da selva. Novidade. À parte o seu interesse pessoal em projetos para a preservação de cegonhas, tigres e leopardos da Sibéria, sob o governo de Putin, a Rússia transformou o menosprezo pelo ambiente numa política oficial. Entre outras coisas, ele aprovou a retomada das atividades da fábrica de papel que polui o Baikal, o maior e mais profundo lago do mundo: o presidente o visitou em um minissubmarino e disse que lhe pareceu bastante limpo. "Gosto de gatinhos, de cachorrinhos e de animaizinhos em geral", disse Putin no início da nossa conversa, para a qual também fora convidado meu ex-patrão, o proprietário da Editora Vokrug Sveta. Ele afirmou que achava que suas iniciativas públicas para salvar as espécies ameaçadas contribuíam para chamar a atenção para problemas importantes. "O projeto das cegonhas siberianas foi ideia minha." Isto para mim era novidade. O projeto de recuperação da população das cegonhas siberianas data do final dos anos 70, quando Putin era um jovem membro da KGB. O presidente explicou que tinha ouvido falar do programa muitos anos antes e fora informado de que havia perdido a verba que lhe era destinada. Foi então que teve a ideia de voltar a financiar o projeto. "Portanto", disse Putin, dirigindo-se a mim, "tenho certeza de que você nos dirá quais foram suas razões para se recusar a enviar um repórter, mas saiba que estava errada. E você", falou virando-se para o meu ex-patrão, "também agiu de maneira errada demitindo-a". "É claro que numa revista deve haver disciplina, a mesma disciplina que deve haver no Exército." Tinha chegado a hora da minha mensagem. "Vladimir Vladimirovich, concordo com tudo o que o senhor disse sobre a importância de chamar a atenção para essas questões e sobre a possibilidade de o chefe de Estado influenciar os programas de preservação da natureza", disse. "Mas, infelizmente, do modo como as coisas funcionam neste país, sempre que o senhor se envolve, sua pessoa se torna mais importante do que a causa. O senhor, provavelmente, sabe que quando põe uma coleira de rastreamento via satélite num tigre siberiano, o tigre, na realidade, foi emprestado pelo zoológico de Khabarovsk. E, quando põe uma coleira em um urso polar, o urso foi capturado anteriormente e mantido sob forte sedação até a sua chegada." "Evidentemente, há excessos!", interrompeu Putin, rindo. "E adverti o pessoal disto. Mas é muito mais importante eu chamar a atenção para essas questões! É claro que o leopardo tinha sido sedado", acrescentou (eu não tinha falado do leopardo). "Mas o importante é que eu fui a pessoa que apresentou todo o projeto sobre os leopardos! E sobre os tigres. Depois que fiz isto, outros 20 países que têm tigres também começaram a se preocupar com o problema. É claro, excessos existem", repetiu. "Como aquela vez que mergulhei para pegar as ânforas." Informação. Não pude acreditar que ele lembrasses do fiasco das ânforas. Cerca de um ano antes, Putin posara para as câmeras emergindo do fundo do Mar Negro com duas antigas ânforas - logo depois, foi divulgado que haviam sido colocadas lá para que ele as apresentasse. "Então, todos começaram a escrever que as ânforas haviam sido plantadas. É evidente que foram plantadas! Eu não iria mergulhar a ponto de estourar minhas guelras", aludindo, imagino, a algum tipo de equipamento equivalente ao de uma criatura do mar. "Eu estava mergulhando para chamar a atenção para a história daquele local. Então, todos escreveram que eu tinha surgido lá com as ânforas plantadas como um imbecil. Só que agora algumas pessoas começaram a ler de novo a história." Virou-se de novo para o meu diretor e perguntou se ele estava disposto a me oferecer o emprego de volta. O diretor concordou. "Mas há mais uma coisa", eu disse, quando Putin se dirigiu para mim. "O senhor disse que uma revista deve ser dirigida como um Exército. Eu acho que não é assim." "Depende do Exército", retrucou Putin, ironicamente. Ele gosta de ironias. "Não, não depende. Uma revista não deve ser como um Exército", eu disse. Estava quase citando a lei russa sobre a imprensa, que proíbe explicitamente os donos de editoras de interferir na política editorial, mas Putin, de repente, parou de sorrir e se levantou. "Tenho uma longa experiência com esse tipo de coisa", falou com frieza. "Discutiremos essa questão em outra ocasião". A reunião durou 20 minutos. O que aprendi? Que a pessoa que eu descrevi no meu livro - superficial, preocupada consigo mesma, pouco perspicaz e muito pouco informada - é, na realidade, a pessoa que está governando a Rússia, até onde é possível governar a Rússia. Por mais difícil que fosse acreditar, suponho que ele não fora informado de que eu havia escrito um livro a seu respeito em que o criticava energicamente, publicado com estardalhaço em quase todas as partes do mundo, com exceção da Rússia. Putin, que recebe a maior parte das informações dos canais de televisão que domina, involuntariamente, oferecera um trabalho a um dos seus críticos mais declarados. É evidente que aquele emprego teria sido meu. No entanto, se o aceitasse naquele momento, daria a impressão de ter sido nomeada diretamente pelo Kremlin. E, exatamente por esse motivo, tive de recusá-lo. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

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