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O princípio de Putin: não mostrar medo

Líder russo enfrenta momento de isolamento político e diplomático, mas mantém posição desafiadora frente a temores

Por STEVEN LEE MYERS
Atualização:

Há muito tempo, no início de sua ascensão ao poder, Vladimir Putin contava que, no final da década de 50, quando garoto, morava num apartamento comunitário soviético em Leningrado, atual São Petersburgo. Para brincar, ele e os amigos caçavam ratos nos corredores do edifício. Era uma espécie de futebol até que, um dia, um rato encurralado num canto pulou sobre o menino Vladimir, que, surpreso e assustado, fugiu correndo. A história, vívida como um pesadelo, pretendia mostrar as origens pobres do futuro presidente da Rússia, mas, nos anos que se seguiram, lembranças de uma existência humilde como essas desapareceram da biografia oficial de Putin. Ao contrário, os russos têm engolido uma dieta persistente de atos de liderança e machismo transmitidos pela televisão, como a humilhação de burocratas e oligarcas e a exibição de um desempenho excelente nos esportes. Sua mais recente paixão é o hóquei no gelo, ao qual, aproximando-se dos 60 anos, vem se dedicando com notável determinação. Isto o torna uma caricatura do homem de ação, do líder benevolente, porém distante, do patriota inflexível enviado pela providência para restituir à Rússia seu merecido destino depois do colapso da União Soviética. Apesar disso, a história do rato - e o seu desaparecimento - é tema recorrente nos episódios sobre a infância de Putin, os anos de formação como funcionário de baixo escalão na KGB, a inesperada ascensão à presidência nos anos 90 e a persistente consolidação do poder desde 2000, ou seja, sua falsidade e o temor de mostrar-se fraco. Embora gostasse de se descrever como um jovem durão criado em Leningrado, começou a treinar artes marciais quando era ainda um rapazola magricelo, por conta própria, para se proteger dos valentões do edifício. Sua experiência mais terrível na KGB ocorreu na Alemanha Oriental em 1989, quando o esclerosado Estado soviético se mostrou irresoluto, pelo menos na sua opinião, nos protestos que provocaram a queda do Muro de Berlim. Quando uma "multidão" de manifestantes se aproximou do palacete da KGB em Dresden, onde estava, ele a enfrentou, sozinho e desarmado e, sem ordem de Moscou, advertiu que o pessoal do edifício abriria fogo. Na sua lembrança, a "malta" era assustadora, embora não passasse de algumas dezenas de pessoas. Nos tumultuados anos 90, época em que um surto da violência e criminalidade acompanhou o advento do capitalismo na cidade, rebatizada São Petersburgo, mandou as filhas para o campo para protegê-las. "Demonstramos fraqueza", declarou Putin em outro contexto, "e os fracos são derrotados". Foi em 2004, depois do cerco terrorista a uma escola em Beslan, no sul da Rússia, que terminou depois de dois dias e meio com a morte dos 334 reféns, 186 deles escolares. Para ele, o ataque foi orquestrado por inimigos externos, não pelos terroristas chechenos que na realidade foram seus autores - e as consequências não significaram flexibilidade ou determinação, mas total vulnerabilidade. Doutrina. O temor de mostrar fraqueza tem sido um dos astutos elementos básicos da identidade política de Putin. E para consternação dos democratas do país e dos líderes mundiais com os quais ele se relaciona, tornou-o extraordinariamente popular e poderoso, embora em momentos de franqueza e privadamente, alguns funcionários na Rússia admitam os gravíssimos problemas que o país enfrenta.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin Foto: Mikhail Klimentyev/AFP

Pela primeira vez em dez anos, Putin pronunciou um discurso na ONU e se reuniu com um presidente Obama evidentemente relutante, na tentativa de mais uma vez ficar em destaque no cenário mundial, com a convicção de ter sido injustamente rejeitado por seus rivais no Ocidente. Editorialistas do Wall Street Journal afirmaram que o líder russo está "roubando o dinheiro do lanche de Obama". Andrei Kolesnikov, do Centro Carnegie em Moscou observou recentemente que "erguer-se depois de ficar de joelhos" é uma "metáfora particularmente apropriada para os russos", no sentido de recuperar a dignidade e o orgulho nacional. É de joelhos que muitos russos acreditam ter passado os anos que se seguiram ao colapso da URSS - até que Putin, com suas próprias forças, os obrigou a ficar de pé. O que Putin conseguiu foi persuadir os russos de que as dificuldades que atualmente enfrentam - muitas em consequência das decisões pessoais do seu líder - são provas dos esforços dos inimigos da Rússia para manter a nação em uma situação enfraquecida. "Depois do colapso da União Soviética, muitos cidadãos sentiram-se humilhados pela derrota na Guerra Fria", escreveu Kolesnikov num ensaio publicado no site do centro. A anexação da Crimeia em 2014, o desafio às sanções do Ocidente a exibição de poderio militar na Síria são antídotos para os males do país. "As últimas humilhações foram apagadas pela construção de uma fortaleza sitiada nas fronteiras ampliadas do país". Rumo. O pesquisador concluiu, como muitos já fizeram, que as táticas de Putin foram fortes - muitas vezes comparadas ao seu treinamento no judô -, mas ele não tem estratégia. Um ano e meio depois da anexação da Crimeia, Putin nunca esteve tão isolado em termos políticos e diplomáticos. Ele tem poucos aliados externos e, internamente, enfrenta uma economia em declínio, seriamente afetada pelos baixos preços do petróleo e pelas sanções econômicas em retaliação ao envolvimento do Kremlin na Ucrânia. A recente intervenção na Síria, mais de quatro anos após o início da guerra naquele país, assinala um crescente desespero quanto ao destino do governo de Bashar Assad - e aos temores do Kremlin pelas consequências de sua eventual queda. Em parte, talvez seja uma jogada destinada a desviar a atenção da desastrosa intervenção da Rússia na Ucrânia e ao iminente questionamento sobre sua culpa na derrubada do voo 17 da Malaysia Airlines. Entretanto, como sempre fez, o líder russo reagiu à fraqueza ignorando-a de maneira temerária, até mesmo com uma atitude de desafio. Ao longo dos seus 15 anos no centro da política russa, isso tem funcionado./ TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA*É COLUNISTA

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