O que dois inimigos têm em comum

Não há duas nações que se tenham influenciado tão profundamente; se Israel atacar o Irã, onde ainda vivem 20 mil judeus, estará bombardeando parte da história de seu povo

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Por ESCREVEU ASSASSINS OF THE TURQUOISE PALACE (OS ASSASSINOS DO PALÁCIO TURQUESA) , ROYA , HAKAKIAN , ESCREVEU ASSASSINS OF THE TURQUOISE PALACE (OS ASSASSINOS DO PALÁCIO TURQUESA) , ROYA e HAKAKIAN
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Se estourasse uma guerra entre Irã e Israel, de que lado você ficaria? Alguém me perguntou isso no Facebook há algumas semanas, quando um ataque israelense contra instalações nucleares iranianas parecia iminente.Desde a adolescência, no início da revolução do Irã, em 1979, minha lealdade sempre foi tão frequentemente questionada que passei a considerar essas suspeitas parte da minha herança iraniana-israelense. No início dos anos 80 em Teerã, fui aceita num pequeno grupo de intelectuais socialistas que se reuniam clandestinamente em um apartamento todas as quintas-feiras à noite. Eram anos perigosos. O governo ainda não tinha experiência no poder e era violentamente inseguro. Os grupos da oposição eram constantemente atacados. A guerra contra o Iraque era arrasadora, e os Estados Unidos haviam imposto sanções. Passávamos os dias nas filas, porque os produtos de primeira necessidade eram racionados. Cada integrante do grupo tinha a incumbência de acompanhar de perto esses problemas prementes. Entretanto, eu era encarregada de apresentar semanalmente informações atualizadas sobre o conflito israelense-palestino. Embora muito mais jovem do que os outros, sabia exatamente que simpatias deveria expressar. A terra devia voltar aos palestinos, declarava ao encerrar cada resumo. Nunca mencionei que entre os judeus que viviam naquela terra estavam meus parentes pobres que deixaram o Irã e voltaram para Israel depois que sua casa e loja foram incendiadas por uma multidão furiosa durante o caos que antecedeu a revolução. O silêncio e a submissão eram e são os aspectos fundamentais do caráter do judeu iraniano. Evitávamos e fugíamos do confronto. Enterramo-nos no esquecimento mesmo vivendo ao lado de amigos e vizinhos muçulmanos. A segurança e o sucesso sorriam para os que melhor se misturavam, em comparação aos que não permitiam que qualquer parte de sua identidade judia se mesclasse à iraniana. É esse esquecimento que hoje ameaça arruinar ambos povos. Não há duas nações que se tenham influenciado tão profundamente e no entanto desconheçam essa dívida recíproca. No amanhecer do século 20, o Irã foi conturbado pela anarquia e pelo tribalismo endêmicos na região. Por volta da metade do século, sob o Xá Reza Pahlevi, o Irã tinha um Exército e um governo central eficiente que tornou possível a industrialização. O crédito por grande parte da industrialização vai para as iniciativas de judeus iranianos de grande projeção. Entre eles estavam os irmãos Nazarian, que deixaram o Irã e foram para Israel no final dos anos 40, combateram na guerra de independência de Israel em 1948, trabalharam na construção e, quando dominaram a profissão, fizeram o impensável: voltaram para o lugar onde nasceram para começar a construir por lá. Fabricaram carregadeiras, caminhões basculantes, guindastes e betoneiras, e tornaram esses modernos instrumentos da urbanização acessíveis pela primeira vez ao Irã. A cidade de Isfahan, um dos principais destinos do turismo iraniano, cuja grandeza proverbial é equiparada "à metade do mundo", tornou-se tal quando os irmãos, em colaboração com famosos engenheiros israelenses, construíram seu sistema de esgotos subterrâneos e a livraram das doenças e do ar tóxico. Outros irmãos, os Elghanian, construíram edifícios e estradas permitindo que a cidade abandonasse o isolamento tribal. Eles fundaram também a primeira fábrica avançada de plásticos do Irã, abrindo caminho para outros avanços socioeconômicos e científicos. Mas logo depois da queda do xá, o presidente dos Tribunais Revolucionários, Sadegh Khalkhali, executou centenas de jovens democratas que se revoltaram contra o novo regime. Executou também um dos irmãos Elghenian, Habib, acusado de semear a "corrupção sobre a face da terra" e de "espionar para Israel". A execução de Elghenian apavorou a comunidade israelense. Muitos dos 100 mil judeus do Irã fugiram, na maior parte para Israel ou para os Estados Unidos. Há apenas cerca de 20 mil. Assim como a maioria dos iranianos não conhece essa história, também os judeus não estão a par das contribuições dos iranianos para a sobrevivência dos judeus. Muitas vezes, vejo o olhar surpreso de judeus americanos ao me conhecerem, e ao saberem pela primeira vez da existência de judeus no Irã, embora o Irã ainda hoje seja o país com o maior número de judeus no Oriente Médio, além da Turquia e de Israel. Já no século 6 a.C., os judeus, em seu exílio na Babilônia, encontraram o seu salvador em Ciro o Grande, da Pérsia, que os ajudou a regressar a Israel. No início dos anos 40, milhares deles deveram sua vida ao corajoso Abdol-Hossein Sardari, chefe da missão diplomática do Irã na França, que, desafiando as ordens nazistas, emitiu milhares de passaportes e documentos de viagem para judeus. Mas quando o presidente Mahmoud Ahmadinejad negou o Holocausto, os descendentes dos sobreviventes poloneses que preferiram se estabelecer no Irã não deixaram de colocar flores sobre os túmulos de seus parentes e amigos dos no famoso Cemitério Polonês de Teerã. Permitiriam essas duas nações que seus governantes entrassem em guerra se soubessem quanto uma deve à outra? Bombardeando o Irã, Israel bombardearia uma parte da história judaica. E se isso acontecer, a questão não será que lado escolherei, porque serei duplamente destruída por duas culturas imperfeitas, e no entanto amadas, que fizeram de mim a mulher que sou. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

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