BAGDÁ – Nos últimos 50 anos, o Iraque foi marcado pela violência e pelo obscurantismo. A arte, feita na região há 10 mil anos, havia praticamente desaparecido. Agora, é como se a sociedade iraquiana despertasse ao som de sua própria voz e à forma, tamanho e cores de sua força criativa. Pinturas, esculturas, fotografias e memoriais a manifestantes mortos se tornaram arte política de um tipo raramente visto no Iraque. Vestígios de pop art misturados com realismo soviético e forte influência da internet. Bagdá vem ganhando cores e se tornando uma cidade diferente.
Com um rosto fino, tremendo dentro de um jeans surrado, Abdullah estava em uma garagem inacabada, paralisado diante de um mural cujo significado ele tentava explicar. "O homem do meio pergunta às forças de segurança: 'Por favor, não atire, não temos nada'." Desenhado em carvão no estilo realismo socialista, o mural com mais de 1,5 metro de comprimento mostra um grupo de homens carregando amigos mortos nos braços. São trabalhadores com roupas rasgadas e rostos tensos.
Abdullah, de 18 anos, é ex-faxineiro de um hospital. Ele pediu para não ter seu sobrenome publicado, porque temia sofrer represálias por seu envolvimento em protestos contra o governo. Hoje, ele é o guia informal de uma estranha galeria: a carcaça de um prédio inacabado de 15 andares conhecido como "Restaurante Turco", com vista para o Rio Tigre. O local é o autodeclarado quartel-general dos opositores do governo iraquiano.
Os cinco primeiros andares se tornaram os principais centros de arte que surgiram em Bagdá durante os protestos, quando pintores transformaram paredes e escadas em telas. De onde veio toda essa arte? Como é que uma cidade onde a beleza e a cor foram reprimidas por décadas pela pobreza, pela opressão e pela indiferença, de repente, tornou-se tão viva?
O centro criativo da cidade é a Praça Tahrir. A arte cobre as passagens subterrâneas que correm abaixo dela, o espaço verde atrás dela e as ruas que levam a ela. "No começo, era uma revolta. Mas agora é uma revolução", disse Bassim al-Shadhir, que participa dos protestos. "Temos arte, teatro, as pessoas estão dando palestras e distribuindo livros de graça."
Shadhir, artista abstrato formado em biologia, pintou sua contribuição em uma parede na Rua Sadoun, uma das mais amplas da capital. O mural mostra um homem morto pela polícia, o sangue escorrendo de seu coração em uma piscina, grande demais para ser escondida atrás de um militar mascarado.
Perto dali, um outro mural pede à ONU para resgatar os iraquianos. Outro mais adiante mostra um mapa do Iraque dentro de um coração e diz: "Oh, meu país, não sinta dor". Existem dois ou três murais representando leões, símbolo do período assírio, que os manifestantes adotaram.
Os temas e estilos mostram o quanto a geração mais jovem foi influenciada pela internet, descobrindo imagens que tocam e são revigoradas com toques iraquianos. Rosie the Riveter, ícone cultural que representava as mulheres americanas na 2.ª Guerra, ganhou uma bandeira do Iraque na bochecha. O quadro Noite Estrelada, de Vincent Van Gogh, coloca o Restaurante Turco no lugar dos ciprestes. Algumas pinturas trazem personagens de HQs envoltos na bandeira iraquiana.
Há ecos da pop art, dos anos 60, em uma pintura do Restaurante Turco com um tuk-tuk vermelho voando. O tuk-tuk é um veículo de três rodas movido a diesel, que não exige carteira de motorista, e se tornou símbolo dos protestos que deixaram mais de 500 mortos desde que começaram, em outubro.
As árvores também são outro tema comum, com pintores em diferentes partes do Restaurante Turco desenhando imagens de folhas caindo. "Esta árvore é o Iraque e vou escrever em cada folha o nome de cada um dos mártires mortos pela polícia", disse Diana al-Qaisi, de 32 anos, formada em engenheira de sistemas, mas que trabalha com relações públicas. "As folhas estão caindo porque é outono. Aqueles que tentam matar a árvore estão tentando matar a revolução. Mas, mesmo que tentem, algumas folhas ficam na árvore esperando para nascer."
Zainab Abdul Karim, de 22 anos, e sua irmã Zahra, de 15, conceberam uma visão mais sombria. A árvore das duas é uma silhueta negra em um cemitério e cada sepultura representa um dos manifestantes mortos pela polícia.
Retratos individuais dos que morreram também são comuns. O pequeno parque atrás da Praça Tahrir foi dividido em tendas e uma delas se tornou uma galeria de retratos que se expande constantemente, com fotos dos que foram mortos pela polícia. As pessoas caminham ao longo do memorial em silêncio, olhando para cada um dos retratos. Às vezes, chorando, quando alguém é reconhecido. / NYT