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O serralheiro de Manbij

A euforia inicial dos protestos acabou abafada pela guerra e tem se manifestado na poesia

Por Adriana Carranca
Atualização:

Quando os protestos contra o governo do presidente Bashar Assad começaram na Síria, Abud Said vivia um cotidiano comum na pequena Manbij, nos arredores de Alepo, trabalhando com metais. “Ele queria confrontar o universo cibernético que se apresentava como um rígido contraste à sua própria realidade empobrecida e provinciana”, escreveu Sandra Hetzel, tradutora alemã de seu primeiro livro, O cara mais esperto do Facebook (Editora 34), que descobriu seus textos na internet.

A revolução pessoal de Said coincidiu com a revolução no mundo árabe. Ele faz parte de uma nova geração de poetas sírios que emergiu com a guerra. 

Sírios fogem da guerra e cruzam a fronteira com a Turquia Foto: REUTERS/Ammar Abdullah

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Said abriu conta no Facebook pouco antes dos protestos na Tunísia, mais tarde seguidos por Egito, Líbia e Iêmen. A Primavera Árabe provocou, no início, uma onda de euforia, principalmente entre jovens. Said não pensava em se tornar escritor, mas sua forma de lidar com a euforia era escrever. 

Quando os sírios tomaram as ruas na primavera de 2011, Said se juntou a eles. “Não éramos livres”, disse, quando o encontrei para um bate-papo na quinta-feira. Ele está no Brasil para Flip – a Festa Literária de Paraty. 

Com os primeiros protestos, a barreira do medo se quebrou, acredita Said. Foi dessa descoberta da liberdade que a arte explodiu. Quando o regime respondeu brutalmente às manifestações, os sírios se deslocaram para o espaço seguro e possível da internet.

Escritores com trabalhos já publicados, como Faris Al-Bahra, Lukman Derky, Raid Wahsh, Mosab Al-Numairy, Zakaria Tamer, passaram a se manifestar nas redes sociais. No espaço virtual começaram a dialogar com outros, ainda anônimos: Ammar Tabbab, Aref Akrez, Fadwa Suleiman, Khawla Dunia, Marwa Katbi, Najat Abdul Samad, advogados, médicos, ativistas que começaram a escrever para lidar com a realidade que os cercava. 

Said diz que a revolução inspirou uma transformação radical na consciência estética e na produção cultural do país. A euforia inicial dos protestos acabou abafada pela guerra e tem se manifestado na poesia dessa nova geração de escritores. “Eu escrevo sobre detalhes”, disse. Mas os detalhes de seu cotidiano são profundamente afetados pelos conflitos.

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Manbij foi ocupada pelo Exército Sírio Livre, de oposição ao regime e, entre 2012 e 2013, foi bombardeada pelo governo de Assad. Said conta que, quando os bombardeios se intensificavam, ele ouvia música em volume muito alto, punha fones de ouvido, abria o computador e começava a escrever. “A única coisa que eu podia fazer era continuar escrevendo”, diz. “Só mais tarde me disseram que era poesia.”

Com o agravamento do conflito, que matou mais de 500 mil sírios e obrigou a metade da população a deixar suas casas, Said também decidiu emigrar. Ele não tinha passaporte e atravessou clandestinamente a fronteira para a Turquia. Meses depois, sua cidade foi ocupada pelo EI e seu irmão foi morto. A mãe emigrou com outros filhos para a Turquia. 

Desde que chegou à Alemanha, em outubro de 2013, Said evita falar sobre a guerra. Em um trecho do livro, explica: “Não sou nenhum porta-voz do povo sírio ou dos ‘refugiados’. Eu só posso falar por mim mesmo. E parte do problema é justamente que agora eu tenho aqui um palco, porque escrevi um livro, mas as pessoas que realmente têm algo a dizer, elas que agora mesmo lutam contra o regime e contra o EI, aquelas mesmas pessoas que ainda estão na Síria, os civis que vivem sitiados: a elas, ninguém dá ouvidos.”

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