O Taleban, o ISI e o EI

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Por Adriana Carranca
Atualização:

Conheci o mítico comandante militar do Taleban em Cabul na primavera de 2012. Syed Muhammad Akbar Agha recebeu-me em sua casa, onde oficialmente cumpria prisão domiciliar, embora o próprio filho fizesse sua custódia, acompanhando a entrevista a uma distância desconfortável para quem trazia uma Kalashnikov ao pescoço.

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A casa era um exemplar do que os afegãos chamam de “poppy palaces” (palácios da papoula, alusão à principal fonte de financiamento dos insurgentes: a exportação da matéria-prima do ópio e da heroína para o Ocidente). 

Tudo nele lembrava os bárbaros que desceram as montanhas para retomar o Afeganistão dos soviéticos nos anos 80, do turbante negro à densa barba e até o jeito de se sentar com as pernas dobradas e os pés no assento, desacostumado com os luxos da vida moderna, como aquele sofá de veludo e cetim dourado. Apenas estava mais gordo – e rico.

A década de presença americana no Afeganistão fez-lhe bem. Akbar Agha havia enriquecido, como muitos líderes taleban, ao trocar os valores morais do início do movimento islâmico por toda a sorte de negócios escusos em nome da insurgência.

“Os EUA não têm outra saída, senão negociar com o Taleban”, ele me disse à época, entre um telefonema e outro, em que parecia mediar a libertação de comparsas. “Somos um povo ingovernável.”

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Pouco depois, ganharia mais alguns milhares de dólares dos EUA ao se colocar como mediador da paz com os insurgentes. No ano seguinte ao nosso encontro, viajou ao Catar para abrir um escritório do Taleban num suntuoso casarão do emirado árabe e entregou o posto de líder político a um dos presos que conseguira libertar na negociação, o primo Tayyb Agha.

Na quarta-feira, dias após ser confirmada a morte do mulá Mohammed Omar e a escolha do mulá Akhtar Mansour para substituí-lo, Tayyb Agha demitiu-se. O que o teria levado a renunciar foi o fato de Mansour ter mantido em segredo por quase dois anos a morte de Omar.

Bem, se os primos Agha intermediavam negociações dos taleban e não sabiam da morte de Mulá Omar, é claro que não havia nenhuma negociação em curso com o líder do grupo. Com quem, então, os Agha negociavam?

Não era com Mansour, tido como número 2 na hierarquia do grupo.

Sabe-se disso porque Mansour foi o pivô de um dos mais constrangedores episódios da inteligência americana – digno do Agente 86, o espião atrapalhado da série de TV. Em 2010, os governos do Afeganistão e dos EUA anunciaram as primeiras negociações de paz com os taleban.

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Três reuniões – que envolveram até o transporte do suposto insurgente do Paquistão à mesa de negociações em Cabul em um avião da Otan –, meses de confabulações e milhares de dólares mais tarde, descobriu-se que o homem era um impostor. “Não era ele”, disse então um diplomata a The New York Times. “E nós demos a ele muito dinheiro.”

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Os dois casos indicam o grau de desconhecimento dos EUA no Afeganistão, a ponto de não saber com quem estavam lidando. Também sugerem que a Casa Branca, como na Guerra Fria, continua escolhendo mal seus aliados na região.

Difícil acreditar na ignorância do serviço de inteligência paquistanês (o Inter-Services Intelligence ou ISI, na sigla em inglês) sobre o impostor. 

Como Omar e toda a cúpula do Taleban, Mansour atravessou a fronteira para o Paquistão em 2002, após a invasão americana do Afeganistão, e tinha relativa liberdade no país, sob as barbas do ISI. Mesmo sabendo disso, os EUA continuaram enviando milhões de dólares ao Paquistão como aliado da guerra ao terror. Em parte, porque acreditavam que, soltos, os taleban fatalmente os levariam a Omar e seu protegido Osama bin Laden. 

Fontes ouvidas na época apontaram que o próprio ISI enviara o impostor para despistar a CIA, que estaria muito perto de Omar. Pouco antes do episódio, o governo Obama tentara aproximar-se de outro líder do Taleban, Abdul Ghani Baradar, amigo de Omar desde os tempos de infância em Uruzgan e homem de sua confiança, segundo reportagem de Steve Coll para a revista New Yorker.

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Representante da tribo popalzai, do então presidente do Afeganistão, Hamid Karzai, Baradar teria tentado um acordo direto do governo afegão com Omar. Pouco depois, foi preso pelo Paquistão, que não queria acordo sem sua intermediação. Ele foi mantido incomunicável, apesar dos pedidos da Casa Branca para que fosse solto. 

Anand Gopal, corajoso e brilhante jornalista que conheci em Cabul – autor de No Good Men Among the Living (Não há bons homens entre os vivos, em tradução livre), que lhe rendeu indicação ao Pulitzer –, acreditava que Omar vivia em prisão domiciliar na cidade paquistanesa de Karachi sob a vigilância do ISI.

Agora se sabe que o mulá Omar morreu de tuberculose em um hospital da cidade em 2013. O ISI teria imposto Mansour como seu sucessor – se é que o líder está morto (a essa altura, já não é possível afirmar nada).

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O ISI busca no Afeganistão um governo aliado contra a expansão regional da Índia, especialmente agora que as tropas americanas se retiraram. Deixaram para trás um Estado à beira da falência e refém de diferentes facções.

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O mesmo cenário levou à ascensão do Taleban em 1996. Fartos da violência e decepcionados com o abandono do Ocidente, os afegãos acolheram os estudantes (taleban, em árabe) que prometiam recobrar a ordem e fazer justiça segundo as leis de Deus ou sharia.

Não é difícil que o façam novamente agora, diante do caos e das mesmas promessas de um novo movimento, sob outra sigla: o Estado Islâmico, ou Isis. Semanas atrás, Gulbuddin Hekmatyar, veterano dissidente do Taleban que controla Kunar, importante província do Afeganistão, anunciou aliança com o grupo.

*É JORNALISTA E ESCRITORA

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