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O terremoto e o cisne negro do Japão

Catástrofe japonesa representa uma janela de oportunidade para o país resolver seus problemas fiscais, políticos e retomar sua aliança estratégica com os Estados Unido

Por Robert Madsen e Richard J. Samuels
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Observadores da situação mundial falam muitas vezes em acontecimentos "inimagináveis", desdobramentos que, como o fim da Guerra Fria, a crise financeira global de 2008 ou as recentes rebeliões do mundo árabe, revelam-se surpreendentes, não tanto porque são ilógicos, mas porque não se enquadram no alcance normal da experiência e da previsão. Evidentemente, era previsível que um tremor de grandes proporções provocasse um tsunami, com impacto em usinas nucleares que haviam sido projetadas para suportar apenas choques limitados, e a terrível devastação que se seguiria. As implicações políticas, econômicas e estratégicas da catástrofe, portanto, são mais previsíveis do que a catástrofe em si. A seguir, as consequências da tragédia japonesa sob vários aspectos. Política interna. O efeito imediato da tragédia foi dar nova vida a um governo que estava à beira do colapso. O Partido Democrático do Japão (PDJ) subiu ao poder em 2009 com grande votação, derrubando o Partido Liberal Democrático (PLD), que exercia um controle opressivo sobre o sistema político japonês. Entretanto, os erros do PDJ nas negociações da aliança com os EUA, conflitos marítimos com a China e políticas econômicas irresponsáveis fizeram com que os índices de aprovação do partido caíssem. Depois de uma série de escândalos na cúpula do PDJ e da incapacidade do governo em conseguir a aprovação do orçamento de 2011, o primeiro-ministro Naoto Kan parecia fadado à derrota. A situação era tão negra que o jornal Nihon Keizai perguntava se ele, e talvez até o partido, sobreviveriam o mês de março. A crise atual deu ao premiê uma segunda chance. Com milhares de mortes confirmadas, 15 mil desaparecidos, centenas de milhares sem casa e vários reatores nucleares à beira da fusão, não há tempo para uma mudança de governo. Kan usou bem o momento apelando para a "união ao redor da bandeira", criando um centro nacional para a gestão da crise e despachando ministros e outros funcionários para tratar de vários problemas. É ainda muito cedo para saber se ele fez o suficiente, mas parece que seu desempenho é melhor do que o de seus predecessores depois do terremoto de Kobe, em 1995. Em lugar de recusar orgulhosamente as ofertas de assistência de outros países, por exemplo, Kan aceitou rapidamente ajuda, mobilizou o Exército para operações de resgate e apareceu na TV para acalmar os cidadãos. Em razão da magnitude do desastre e da atitude firme de Kan, a oposição modificou sua posição, adotando um tom conciliatório em várias questões fundamentais. Sadakazu Tanigaki, líder do PLD, e outros líderes opositores declararam seu desejo de colaborar na formulação e aprovação de um pacote de gastos de emergência. O âmbito da nova cooperação provavelmente se ampliará, incluindo também o orçamento. Kan e seu partido poderão, portanto, ganhar algum tempo para reconstruir sua reputação e poder, supondo, naturalmente, que o problema na usina de Fukushima não acabe em nova catástrofe. Economia interna. Os efeitos do desastre para a economia do país variam dependendo do horizonte temporal. Como atestam a queda acentuada dos preços das ações japonesas, o impacto no curto prazo é negativo. Não só o setor imobiliário e a capacidade produtiva sofreram perdas como foi destruída grande parte da infraestrutura de transportes e energia. As principais empresas automotivas diminuíram a produção e, a pedido do governo, siderúrgicas e fabricantes de eletrônicos reduziram suas operações para economizar energia. Juntamente com os blecautes determinados pelo governo, haverá escassez de vários bens e serviços. Dependendo da gravidade do problema nuclear, o PIB pode retroceder em 2011. A valorização do iene pode exacerbar essa dinâmica à medida que as companhias japonesas repatriarem o capital dos investimentos no exterior para respaldar a reconstrução do país. O BC japonês, porém, abrandou a política monetária para contrabalançar esse perigo e, se necessário, pode intervir no câmbio. No entanto, no longo prazo, a crise pode ser benéfica. Lembremos que, há mais de 20 anos, o Japão registra um crescimento baixo ou nulo, em grande parte por causa do excesso de poupança e de uma demanda inadequada. O único momento em que a economia cresceu em ritmo vigoroso foi após o terremoto de Kobe, em 1995, quando a necessidade de reconstruir impulsionou os gastos do governo, do setor privado e o PIB cresceu até o início de 1997. Supondo que o elemento nuclear da crise não se agrave, as exigências da reconstrução trarão uma contribuição igualmente considerável para a economia em 2012. No entanto, olhando para o futuro, o desastre terá uma influência negativa para as finanças do Japão. Com a dívida interna próxima dos 200% do PIB, as agências de classificação de crédito concluíram que o risco de uma crise financeira aumentou e, portanto, rebaixaram o país. Antes mesmo da catástrofe, Tóquio sabia que teria de solucionar o problema do déficit pagando suas obrigações e estudava um aumento de impostos. Agora, uma reforma fiscal será impossível. PDJ e PDL estão discutindo a adoção de um imposto de emergência, mas será apenas um expediente temporário e não bastará para cobrir o aumento dos gastos da ajuda e da reconstrução. A consequência será o adiamento de um avanço da consolidação fiscal por pelo menos mais dois anos, em que o país terá de resolver o problema do endividamento com uma força de trabalho mais velha, menos capital excedente e maior probabilidade de fracasso. Se isto ocorrer, pode haver uma repetição da crise financeira da Ásia, de 1997, ou da implosão da bolha das empresas de tecnologia, há dez anos. Economia global. Se as implicações internas do desastre não estão bem definidas, seu significado em ternos globais será mais uniformemente negativo. No curto prazo, a interrupção da atividade comercial no Japão reduzirá a demanda global e, portanto, a balança penderá mais para uma deflação do que para uma inflação global de preços. Esse efeito pode se amplificar com os movimentos de capital: a pressão para o aumento dos juros nos EUA por causa da fuga dos fundos japoneses pode ser superada pela entrada de dinheiro em busca de um porto seguro na atual tempestade. O custo do capital nos mercados americanos pode, portanto, cair em vez de subir, perpetuando as condições anormais que se seguiram à crise de 2008. Com o tempo, porém, o mundo verá um impulso inflacionário maior do preço de determinados bens e serviços. A decisão da China e de outros países em desenvolvimento, em 2008, de expandir os gastos com obras públicas reagindo à desaceleração global, já elevara os preços do concreto, dos metais ferrosos, terras raras, madeira e os outros bens para projetos de infraestrutura. Canadá, Austrália, partes da África, América Latina e os países produtores de petróleo se beneficiaram com a tendência. A entrada do Japão nesses mercados reforçará esse padrão no médio prazo, aumentando a tendência inflacionária que começava a conturbar os bancos centrais nos meses que antecederam o terremoto. Uma versão mais clara do mesmo padrão se dará no mercado petrolífero. A rápida expansão dos países emergentes e a instabilidade do mundo árabe fizeram com que os preços subissem consideravelmente em 2010. O problema em Fukushima, que desacreditou uma fonte de energia para a qual o mundo inteiro estava se voltando, contribuirá para acelerar o processo. Não só a tão divulgada política energética nuclear do Japão será abandonada, mas o "renascimento nuclear" global será interrompido. França, Alemanha e Suíça já anunciaram que reavaliarão seus projetos nucleares. Outras nações farão o mesmo. O problema é que, agora, as únicas alternativas viáveis são os hidrocarbonetos. Assim, as notícias ruins no Japão são más notícias também para o meio ambiente global. Geopolítica. Em termos geopolíticos, a tragédia melhorará as relações com os EUA. Depois de aceitar durante décadas a supremacia americana na Ásia, os japoneses haviam iniciado um debate sobre uma mudança do equilíbrio de poder regional. Em 2009 e 2010, o PDJ vinha considerando uma virada em direção à China, mas a briga no Mar do Japão e a decisão de Pequim de lançar mão de um embargo nas exportações de terras raras como arma diplomática convenceu Tóquio a voltar atrás. Ao mesmo tempo, o desastre aumentou a legitimidade das Forças de Autodefesa do Japão. Os 100 mil soldados que foram mobilizados para os trabalhos de resgate e para a campanha de reconstrução representam o maior envolvimento militar japonês desde a 2ª Guerra. Todas as evidências sugerem que eles foram bem recebidos no novo papel, o que significa que o país passou a ter uma boa imagem dos militares. Também mudou a atidude japonesa com relação às tropas americanas em seu território. Poucas horas depois do terremoto, o presidente Barack Obama enviou mensagem de solidariedade e prometeu ajuda. A pedido de Tóquio, Washington enviou navios e equipamentos. O uso de helicópteros da base de Okinawa também foi bem recebido, marcando uma trégua na discussão sobre o tema. A aliança nunca funcionou tão bem e nem foi tão amplamente aceita. Os dois países, porém, precisarão de uma cooperação mais profunda para tratar de desafios que o desastre agravou. Obviamente, a perda de tanta riqueza, da capacidade produtiva, financeira e da confiança nacional acelerará a ascensão da China em relação ao Japão. Igualmente preocupante é a influência que o desencanto com a energia nuclear representará para países ricos em petróleo como o Irã. Administrar essas mudanças exigirá relações bilaterais mais estreitas e líderes mais fortes, tanto em Washington quanto em Tóquio. Na realidade, o Japão se encontra em um momento de mudanças cruciais. Estimulando a opinião pública, a catástrofe deu ao governo a possibilidade de agir de maneira corajosa e responsável. Se for bem-sucedido, o PDJ conseguirá solucionar os problemas econômicos e financeiros que se avolumam no horizonte. A inclinação para uma cooperação maior com os EUA desempenhará um papel de suporte ao longo do processo. mas se Tóquio não conseguir administrar a crise, as perspectivas para o Japão se tornarão mais negras do que têm sido até agora. Nesse caso, o país sairá do desastre com menos poder e com as finanças ainda mais comprometidas. A tendência do mundo em ver o Japão como uma força decadente seria confirmada e o país teria de esperar uma nova crise financeira para resolver seus problemas fiscais. / TRADUÇÃO ANNA CAPOVILLA ROBERT MADSEN É MEMBRO DO CENTRO DE ESTUDOS INTERNACIONAIS DO MIT RICHARD SAMUELS É DIRETOR DO CENTRO DE ESTUDOS INTERNACIONAIS DO MIT

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