15 de fevereiro de 2015 | 02h01
Hariri era extremamente controvertido. Filho de uma modesta família muçulmana sunita de Saida, tornou-se um bem-sucedido empreendedor no setor da construção civil na Arábia Saudita, onde conseguiu, por sua capacidade, conquistar os favores da família real e acumular uma fortuna colossal. Nomeado premiê logo após o acordo de Taef, que pôs fim à guerra civil, ele foi o artesão da reconstrução do centro de Beirute, transformada num amontoado de escombros pelos combates. Seu sonho era fazer com que a capital libanesa voltasse a ser o centro bancário e financeiro da região, papel de que foi despojada por Dubai.
Admirado por alguns por sua moderação e espírito liberal, era acusado por outros de ter enriquecido de maneira escandalosa por meio de expropriações durante a reconstrução e de ter corrompido numerosas personalidades políticas.
A abertura de um inquérito internacional não pôs fim ao massacre: uma série de atentados visou, nos últimos anos, uma dezena de políticos, agentes de segurança e jornalistas. O filho e sucessor de Hariri, Saad, continua temendo por sua vida e exerce sua atividade política a partir de Paris e Riad. Ontem, ele participou das homenagens ao pai, em Beirute, pedindo moderação e combate contra o extremismo islamista.
Por sua vez, a criação de um Tribunal Especial para o Líbano, sediado nos arredores de Haia, só contribuiu para aprofundar a divisão e os amigos da Síria o acusam de ser um instrumento político nas mãos dos EUA e de Israel. O tribunal internacional, que iniciou suas atividades em 2013, está no encalço de cinco membros do Hezbollah, suspeitos de terem executado o atentado contra Hariri.
Entretanto, a milícia xiita recusou-se terminantemente a entregá-los, ameaçando punir com toda severidade quem se aproximar deles. Os cinco indivíduos foram aparentemente traídos pela recuperação e reconstituição dos sinais emitidos pelos celulares utilizados pelas diferentes equipes encarregadas de acompanhar os deslocamentos da vítima.
Agora, as audiências concentram-se na identificação dos mandantes do assassinato de Hariri e nos depoimentos das várias testemunhas que confirmaram ameaças feitas por Bashar Assad contra o ex-chefe de governo.
O Líbano mudou consideravelmente, sob vários aspectos, depois do assassinato. Em primeiro lugar, houve o aumento do poder do Hezbollah, que praticamente se arrogou o direito de guerra ou de paz em detrimento da autoridade estatal.
Não contente por arrastar o país num confronto devastador com Israel em 2006, a milícia xiita tomou a iniciativa de participar ativamente do conflito da Síria, ao lado do regime de Assad, atraindo para o país duras represálias dos radicais islâmicos. Utilizando continuamente a manobra da falta de quórum parlamentar, o Hezbollah bloqueia, há meses, a eleição do presidente da república.
Entretanto, o fato mais grave é a lenta, porém constante, erosão da base popular fiel à corrente sunita moderada personificada pelo filho de Hariri. Por pragmatismo, e apesar das revelações do Tribunal Especial sobre o assassinato do pai, ele empreendeu um diálogo com o Partido de Deus (Hezbollah), a fim de reduzir, na medida do possível, as tensões entre a população sunita e xiita.
Essas negociações produziram apenas um acordo para a supressão de retratos gigantes de chefes políticos e religiosos expostos nos bairros antagônicos. Mesmo esse resultado insignificante foi contestado em Trípoli. Nela, a segunda maior cidade do país (homônima da capital líbia), foram içadas bandeiras negras com a inscrição "Alá é maior", lembrando de maneira alarmante o emblema do Estado Islâmico.
O autor dessa iniciativa foi um deputado islamista aliado de Hariri, que provocou um escândalo ao exigir, diante da TV, a supressão de símbolos cristãos que dominam o litoral norte de Beirute, como as estátuas da Virgem de Harissa. A filiação dele ao bloco de Hariri foi imediatamente suspensa; mas o incidente mostra até que ponto a moderação se tornou coisa rara no país do cedro. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
*ISSA GORAIEB É JORNALISTA DO 'L'ORIENT-LE JOUR', DE BEIRUTE, E COLUNISTA DO 'ESTADO'
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