O terrível preço da cúpula

Grande perdedor do encontro será a arquitetura de segurança montada pelos EUA e responsável pela estabilidade na Ásia

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Por Redação
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Os diplomatas costumam afirmar que quando uma potência oferece para um país menor um acordo em que ambos ganham, isto significa que a potência pretende ganhar duas vezes. Mas a reunião de cúpula entre EUA e Coreia do Norte pode ser uma exceção: será uma negociação que permitirá que não só os dois principais protagonistas cantem vitória, mas também agradem a vários observadores interessados.

Tanto a Coreia do Sul como a China têm grandes esperanças desse encontro. O Japão está mais receoso. Mas, se um acordo for alcançado, o grande perdedor será a arquitetura de segurança comandada pelos EUA e responsável por décadas de estabilidade na Ásia.

Kim Jong Un visita pontos turísticos de Cingapura acompanhado por autoridades do país Foto: KCNA via REUTERS

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A cúpula ocorre em um hotel de luxo na Ilha Sentosa, em Cingapura. Bem próximo dali há muitos campos de golfe, praias, além de um museu de cera e um parque temático da Universal Studios, com uma viagem no espaço apelidada de “batalha intergaláctica entre o bem e o mal” e “Vingança da Múmia”, que promete um “mergulho total na escuridão”. 

“Sentosa é um termo malaio que significa paz ou tranquilidade, visto com um bom presságio na Coreia do Sul, onde os videntes e o simbolismo são levados em consideração. A ilha só recebeu este nome em 1972, com ajuda do Conselho de Turismo de Cingapura. Antes, era conhecida como “Pulau Blakang Mati”, o que significa “Ilha da Morte”.

A relação entre EUA e Coreia do Norte sempre teve uma vertente surreal. Em encontro em 2000, em Pyongyang, Madeleine Albright, então secretária de Estado, foi recebida com paradas militares. Os dois lados vêm negociando o programa de armas nucleares norte-coreano desde 1992, quando Kim Il-sung, avó de Kim Jong-un, ainda estava no poder.

O Norte descumpriu muitas promessas de abandono das armas nucleares. Observadores do país há muito tempo discutem se o regime considera estas armas vitais para sua sobrevivência ou se são um recurso para exercer influência sobre o mundo externo. Afinal, a capacidade do Norte de atacar o Sul com armas convencionais serve como dissuasão, sem necessidade de bombas atômicas. 

De qualquer maneira, o “desarmamento completo, verificável e irreversível” que os EUA desejam, provavelmente, não será obtido. Mas o encontro, ainda assim, pode ser declarado um sucesso, uma vez que Trump e Kim parecem ansiosos por isso. A Casa Branca viu-se no direito de se gabar.

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A equipe de Trump comemorou o 500.º dia do seu chefe no governo, afirmando que a campanha dos EUA para tornar mais severas as sanções contra a Coreia do Norte nos últimos 18 meses é responsável por deixar o país mais perto de aceitar um fim de seu arsenal letal. Sob o comando de Trump, os EUA adotaram uma política de máxima pressão, incluindo ameaças de “fogo e fúria” contra Kim, se ele persistir na sua intransigência.

+ Crise nuclear na Coreia do Norte ‘está longe de uma conclusão’, diz Trump

Com base na sua distopia stalinista, Kim perseguiu uma história conflituosa e igualmente excitante, diz um estudioso de um centro de análise patrocinado pelo governo chinês que viaja à Coreia do Norte várias vezes ao ano. “Kim disse às elites norte-coreanas que os testes com mísseis e armas nucleares no ano passado tinham como objetivo forçar os EUA a negociarem. De modo que a população acha que esta é uma vitória de Kim.”

Imagens. Além das fotos, contudo, não está claro o que esse encontro produzirá. Americanos que já participaram de conversações anteriores sugerem todo o tipo de possíveis incentivos para convencer Kim abandonar suas armas: o abrandamento das sanções, investimentos, um tratado de paz formal, o estabelecimento de relações. Trump falou em oferecer garantias “robustas” contra ataques americanos.

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O problema é que isso já foi tentado antes. As duas Coreias renunciaram às armas nucleares num acordo em 1992, pouco depois de os EUA retirarem suas armas nucleares táticas de suas bases na Coreia do Sul. Mas, em 1994, Kim Il-sung expulsou os inspetores internacionais e ameaçou transformar o plutônio de um reator nuclear em bombas primitivas. Com base num acordo firmado em 1994, a Coreia do Norte prometeu abandonar o trabalho ilícito com armas com plutônio em troca de ajuda, petróleo e reatores de água leve civis fornecidos pelos EUA. 

Em 1999, foi decretado um abrandamento das sanções em troca do fim dos testes com mísseis. E, em 2000, uma cúpula entre os líderes das duas Coreias abriu caminho para uma visita do presidente Bill Clinton. Em 2002, a Coreia do Norte revelou seu programa secreto de armas nucleares e expulsou os inspetores internacionais, o que levou a uma iniciativa multilateral com vistas à paz chamada “conversações entre seis partes”, que duraram até o teste nuclear realizado em 2006. 

A Coreia do Norte testou cinco armas nucleares entre 2009 e 2017. E também desafiou o Conselho de Segurança da ONU ao testar mísseis balísticos de grande alcance, que culminou, no ano passado, com diversos testes com mísseis com capacidade de atingir o continente americano.

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Christopher Hill, ex-diplomata americano, lembrou a linguagem otimista, de um trabalho com vistas a “um regime de paz permanente na Península Coreana”, no acordo assinado por EUA, China, Japão, Coreia do Norte, Rússia e Coreia do Sul, em 2005. Esse acordo também incluiu promessas norte-coreanas de renunciar às armas nucleares, acatar as inspeções internacionais e aderir ao Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), do qual ela havia se retirado antes.

Na época, os EUA ofereceram garantias de que não havia nenhuma intenção de atacar ou invadir o país, seja com armas convencionais ou nucleares, e asseguraram que não possuíam armas nucleares instaladas na Coreia do Sul. “Mesmo a ideia de estabelecer representações diplomáticas foi apresentada, por insistência da China”, afirmou Hill.

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Ele atuou vigorosamente para convencer o governo Bush, então muito cético a respeito, a aceitar a ideia, que depois apresentou à Coreia do Norte em 2007. “Eles rejeitaram imediatamente”, disse. “Os norte-coreanos tendem a querer uma coisa até que não desejam mais.”

Há razões para imaginar, contudo, que desta vez a Coreia do Norte esteja mais interessada em um acordo. “Embora as armas nucleares sejam um pilar do regime, as elites também estão mais interessadas no pequeno boom econômico que Kim conseguiu”, diz Andrei Lankov, da Universidade de Seul. Kim chegou a prometer trabalhar pelo crescimento do país, depois de anos em que a produção de armas foi colocada em primeiro lugar. 

Kim foi mais além de seus predecessores em termos de priorizar o desenvolvimento econômico. Chegou a incentivar o investimento privado em empresas estatais. Desde que assumiu, em 2011, a economia cresceu um único dígito ao ano, segundo dados do BC da Coreia do Sul. Embora esses números não sejam comprovados, indicam que houve uma grande mudança em relação ao colapso econômico e à fome generalizada durante a presidência do pai de Kim. 

Segundo autoridades norte-coreanas, Kim pretende copiar o Vietnã, que cresceu rapidamente depois de seu acordo de paz com os EUA, em parte para se proteger da China. No mínimo, Kim está interessando na redução das sanções. Importações de painéis solares da China, que vinham crescendo rapidamente até o ano passado, caíram para zero em março pela primeira vez em oito anos. Os preços do combustível dispararam em abril e ONGs já observam escassez de fertilizantes. 

Trump parece determinado a ser moderado. Embora tenha declarado que pretendia suspender a cúpula em razão da “hostilidade” da Coreia do Norte, ele recebeu calorosamente os representantes de Kim na Casa Branca, que lhe entregaram uma carta longa do seu chefe. Em seguida, Trump agendou novamente o encontro. John Bolton, assessor de Segurança Nacional, foi mantido nos bastidores, depois de enfurecer a Coreia do Norte ao citar o desmantelamento total do programa nuclear da Líbia como modelo.

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Uma tese é a de que Kim oferecerá a seguinte opção: ou a eliminação imediata dos mísseis capazes de atingir os EUA ou um programa mais lento e por etapas, já tentado antes, para desmantelar seu programa nuclear. O que pode ser uma armadilha.

No caso de um processo gradual, ele seguirá o mesmo caminho de seus predecessores, com a Coreia do Norte se beneficiando do abrandamento das sanções para depois abandonar o acordo a tempo de preservar sua capacidade nuclear. Trump pode concluir, porém, que basta um acordo limitado sobre os mísseis, pois lhe permitirá dizer que cumpriu a promessa de proteger o país. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO © 2017 THE ECONOMIST NEWSPAPER LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM 

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