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É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais. Escreve uma vez por semana.

Opinião|O vírus e a fé

Deus é onipresente. Não faz sentido manter os templos abertos no meio de um surto

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Atualização:

Os êxitos e fracassos de outros países oferecem respostas para os dilemas do Brasil na abordagem da pandemia: se o lockdown vale a pena, se é recomendável voltar às aulas e abrir templos religiosos, e quando testar a população. O Brasil tem 125 mortes por covid-19 por 100 mil habitantes. Os EUA, que também adotaram medidas pouco rigorosas de restrição da circulação, têm 159. A Índia, uma democracia em desenvolvimento de dimensões continentais, foi rigorosa, e tem 12 mortes por 100 mil. A China, que foi extrema, 0,35. 

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Os países escandinavos têm graus equiparáveis de desenvolvimento e densidade populacional. A Dinamarca e a Noruega, que adotaram restrições, registram 41 e 12 mortes por 100 mil, respectivamente; a Suécia, que não adotou, 127. Outros países europeus que realizaram lockdowns apresentam índices altos de mortalidade: França, 131 por 100 mil; Espanha, 151; Portugal, 160; Reino Unido, 187. As curvas mostram claramente que os picos nesses países ocorreram em períodos de relaxamento nas restrições. Portanto, esses dados falam a favor das restrições, não contra.

O lockdown precisa ser combinado com programas de transferência de renda para os trabalhadores de setores não essenciais que não podem fazer home office. Empresas, sobretudo pequenas e médias, também precisam de apoio. Isso requer gestão, para garantir que o dinheiro vá para as pessoas que precisam e não o contrário. Não foi o que aconteceu no Brasil até agora. 

Em várias ocasiões, o papa Francisco rezou praticamente sozinho para evitar aglomerações. Foto: Vatican Media

Muitas pessoas e empresas que precisavam não receberam ajuda, e muitas que não precisavam receberam. Mas nossa situação seria pior se não tivesse havido ajuda alguma. Como uma restrição absoluta da circulação é impossível e indesejável, os países mais bem-sucedidos na resposta à pandemia são os que montaram sólidos programas de testagem da população. Oito de cada dez pessoas contaminadas pelo coronavírus não têm sintomas. Ele continua se espalhando silenciosamente, até encontrar alguém vulnerável, que poderá matar. Daí a necessidade de testar os assintomáticos.

Entretanto, no Brasil praticamente só são testadas as pessoas com sintomas. Uma forma de medir se um país testa o suficiente é o índice de resultados positivos. Quanto mais alto esse índice, menor o alcance da testagem. No Brasil, em torno de 25% dos testes dão positivo; nos EUA, 9%; no Reino Unido, 3%; na Índia, 2%. Na Nova Zelândia, referência na resposta à pandemia, esse índice é de 1 para mil.

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Dos 168 milhões de crianças que ficaram totalmente sem aulas no mundo no ano passado, 98 milhões são da América Latina, afirma relatório do Unicef. Ou seja, 58% do total. A população da América Latina (646 milhões) representa 8% da população do mundo (7,674 bilhões). Esses números demonstram um problema cultural: o pouco valor dado à educação na região. 

Estudos nos EUA e na Europa mostraram que a curva de casos não subiu com a volta às aulas. Isso porque, por razões que ainda não são conhecidas, as crianças e adolescentes transmitem bem menos o coronavírus do que adultos. Abrir bares e manter escolas fechadas é obsceno.

O papa Francisco evitou aglomerações na Praça de São Pedro. Em abril do ano passado, no auge da pandemia na Itália, rezou a missa de Páscoa para uma Basílica de São Pedro praticamente vazia. Já na Louisiana, o pastor Tony Spell desafiou advertências do governador e da polícia, e reuniu centenas de fiéis em sua Igreja do Tabernáculo da Vida, na cidade de Central. Essa aglomeração contribuiu para um surto de casos e mortes no Estado americano. Deus é onipresente, pode ser venerado em qualquer lugar, e a mensagem central dos profetas é a valorização da vida. Não faz sentido manter os templos abertos no meio de um surto. Nem ignorar o que a humanidade tem aprendido por meio da dor e por meio da ciência.

*É COLUNISTA DO ESTADÃO E ANALISTA DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS

Opinião por Lourival Sant'Anna

É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais

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