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Os crimes de guerra no conflito entre Israel e Hamas; leia análise

Com escalada de violência no Oriente Médio, especialistas dizem que os dois lados parecem estar violando leis internacionais

Por Declan Walsh
Atualização:

NOVA YORK - O míssil israelense que atingiu um apartamento palestino causou um número de mortos chocante: oito crianças e duas mulheres, todas mortas durante a celebração de um importante feriado muçulmano, em um dos episódios mais mortíferos da guerra entre Israel e militantes palestinos que dura quase uma semana.

Corpo é retirado de escombros em Gaza; conflito já matou mais de 200 pessoas. Foto: REUTERS/Mohammed Salem

Israel disse que um comandante do Hamas era o alvo do ataque de sexta-feira. Imagens de vídeo mostraram médicos palestinos pisando em escombros, entre os quais se encontravam brinquedos e um jogo de tabuleiro de Banco Imobiliário, enquanto tiravam as vítimas ensanguentadas do prédio pulverizado. O único sobrevivente foi um menino. “Eles não estavam com armas nas mãos, não estavam disparando foguetes, não estavam fazendo mal a ninguém”, disse o pai do menino, Mohammed al-Hadidi, que mais tarde foi visto na televisão segurando a mãozinha do filho no hospital. “Oh, meu amor”, disse ele ao filho.Os civis estão pagando um preço especialmente alto no último surto de violência entre Israel e o Hamas na Faixa de Gaza, levantando questões urgentes sobre como as leis de guerra se aplicam à conflagração: quais ações militares são legais, quais crimes de guerra estão sendo cometidos e quem será responsabilizado? Ambos os lados parecem estar violando essas leis, dizem os especialistas: o Hamas disparou mais de 3 mil foguetes contra cidades e vilarejos israelenses, um claro crime de guerra. E Israel, embora diga que toma medidas para evitar vítimas civis, vem sujeitando Gaza a um bombardeio tão intenso, matando famílias e destruindo prédios, que isto provavelmente constitui um uso desproporcional da força -- e também crime.

Foguetes são lançados em direção a Israel desde a Faixa de Gaza, controlada pelo grupo palestino Hamas. Foto: MAHMUD HAMS / AFP

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No ataque mais mortal até agora, ataques aéreos israelenses contra prédios da Cidade de Gaza mataram pelo menos 42 pessoas no domingo, entre elas 10 crianças, disseram autoridades palestinas. Não é possível fazer nenhum julgamento legal no calor da batalha. Mas alguns fatos estão claros. Ataques aéreos e barragens de artilharia de Israel em Gaza, um enclave empobrecido e densamente povoado com 2 milhões de pessoas, mataram pelo menos 197 palestinos, incluindo 92 mulheres e crianças, entre a noite de segunda-feira passada e domingo, produzindo imagens de destruição que reverberaram em todo o mundo.

Na outra direção, choveram mísseis do Hamas sobre cidades israelenses, semeando medo e matando pelo menos dez habitantes israelenses, incluindo duas crianças -- número maior do que durante a última guerra, em 2014, que durou mais de sete semanas. A última vítima, um homem de 55 anos, morreu no sábado depois que estilhaços de mísseis atingiram a porta de sua casa em Ramat Gan, subúrbio de Tel Aviv. Um soldado israelense também foi morto. Como nenhum dos lados parece capaz de alcançar uma vitória total, o conflito parece estar preso a um ciclo interminável de derramamento de sangue. Então o foco nas baixas de civis se tornou mais intenso do que nunca, uma espécie de proxy da vantagem moral em uma guerra aparentemente que ninguém vai vencer. “A narrativa sobre as vítimas civis assume uma importância maior do que o normal, talvez até maior do que os números, porque fala sobre a legitimidade moral dos dois lados”, disse Dapo Akande, professor de direito internacional da Escola de Governo Blavatnik na Universidade de Oxford. O cálculo da guerra é brutal. Embora o Hamas dispare mísseis não guiados contra cidades israelenses a um ritmo alucinante, às vezes mais de 100 em um mesmo ataque, a grande maioria é interceptada pelo sistema de defesa Domo de Ferro de Israel ou acaba falhando dentro de Gaza, o que resulta em um número de mortos relativamente baixo.

Israel às vezes alerta os residentes de Gaza para evacuarem antes de um ataque aéreo e diz que cancelou as ofensivas para evitar vítimas civis. Mas o uso de artilharia e ataques aéreos para atacar uma área tão confinada, repleta de pessoas mal protegidas, resultou em um número de mortos 20 vezes maior do que o causado pelo Hamas e feriu outras 1.235 pessoas. Aviões de guerra israelenses também destruíram quatro prédios de Gaza que eram usados pelo Hamas. Mas esses edifícios também continham residências e escritórios de agências de notícias locais e internacionais, causando enormes prejuízos econômicos.

Pode não parecer, mas existem regras que governam a carnificina.

As leis da guerra - uma coleção de tratados internacionais e leis não escritas, também conhecidas como direito internacional humanitário - deveriam reger o comportamento dos combatentes. A morte de civis não é, por si só, ilegal. Mas os combatentes devem obedecer a princípios amplamente aceitos, disse Akande.

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Mais importante ainda, eles devem discriminar entre alvos civis e militares, disse Akande. Depois disso, devem calcular a vantagem militar obtida com qualquer ataque potencial em relação aos danos que causará aos civis.

E, quando atacam, os combatentes devem tomar todas as precauções razoáveis para limitar qualquer dano civil, acrescentou ele.

Sem qualquer surpresa, a aplicação desses princípios em um lugar como Gaza é um assunto altamente contencioso. Autoridades israelenses dizem que são forçadas a atacar casas e prédios comerciais porque é onde os militantes do Hamas vivem e lutam, usando civis como escudos humanos. O Hamas é responsável pelas baixas civis infligidas durante esses ataques, dizem as autoridades israelenses, porque dispara foguetes perto de escolas, escritórios e residências.

Em um comunicado sobre o ataque de sexta-feira que matou dez integrantes de uma mesma família, as Forças de Defesa de Israel disseram que “atacaram vários oficiais da organização terrorista Hamas, os quais se encontravam em um apartamento usado como infraestrutura terrorista na área do campo de refugiados de Al-Shati”. Os vizinhos da família, porém, disseram que nenhum oficial do Hamas estava presente no momento do ataque. Grupos de direitos humanos, no entanto, dizem que Israel rotineiramente ultrapassa os limites do que pode ser considerado uma força militar proporcional e que muitas vezes infringe as leis da guerra. “Há um desprezo absoluto pela vida civil, o qual decorre de décadas de impunidade”, disse Omar Shakir, diretor da Human Rights Watch em Israel.

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A principal promotora do Tribunal Criminal Internacional, que em fevereiro anunciou uma investigação sobre possíveis crimes de guerra tanto do Hamas quanto de soldados israelenses, alertou, na sexta-feira, que ambos os lados do atual conflito podem ser objeto de futuros processos. “São eventos que estamos analisando muito seriamente”, disse a promotora Fatou Bensouda à agência de notícias Reuters.

Mas o tribunal criminal, que Israel e os Estados Unidos não reconhecem, enfrenta uma série de obstáculos políticos e logísticos, e podem-se passar anos até que qualquer israelense ou palestino seja levado a julgamento -- se é que isso virá a acontecer. Em rodadas anteriores do combate, outros organismos internacionais proclamaram seus juízos. Em um relatório publicado no ano passado, a Human Rights Watch disse que Israel pareceu violar as leis da guerra ao matar 11 civis durante uma explosão em Gaza em novembro de 2019. Militantes palestinos, que dispararam centenas de foguetes contra Israel naquela época, também violaram as leis da guerra, disse o relatório. Um porta-voz das forças armadas israelenses, o tenente-coronel Jonathan Conricus, não respondeu a vários pedidos de comentários para esta reportagem. Mas Lior Haiat, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores de Israel, disse que seu país fez todo o possível para minimizar as vítimas civis e que o verdadeiro culpado é o Hamas. “Cada um desses mísseis que estão sendo lançados da Faixa de Gaza para Israel é na verdade um ataque terrorista”, disse Haiat. “Mas não é só isso: cada um desses mísseis também é um crime de guerra." Em 2018, o então ministro da defesa de Israel, Avigdor Lieberman, disse: “As Forças de Defesa de Israel são o Exército mais moral do mundo”. Alguns soldados israelenses discordam. Um relatório contundente da Breaking the Silence (algo como “Quebrando o silêncio”), uma organização de veteranos de combate de esquerda, sobre a conduta do exército de Israel durante sua última grande guerra contra o Hamas, em 2014, acusou os militares de operar uma “política de fogo aberto” contra Gaza. O relatório disse que os comandantes israelenses pediram ações “brutais e antiéticas” e encorajaram os soldados a se comportarem agressivamente com os civis palestinos.

O diretor executivo do grupo, Avner Gvaryahu, disse que os militares israelenses não se propuseram a matar civis intencionalmente, mas que rotineiramente usam força desproporcional. Ele apontou para o uso de artilharia nos últimos dias, com munições que podem matar qualquer pessoa em um raio de até 150 metros. “Isso diz muito sobre o fato de que não estamos fazendo tudo ao nosso alcance para evitar vítimas civis”, disse Gvaryahu. Outros rechaçam a insistência de Israel de que o Hamas é o culpado pelas baixas civis porque opera em áreas residenciais. Em um lugar densamente povoado como Gaza, “quase não há como lutar sem expor os civis ao perigo”, disse Nathan Thrall, autor de um livro sobre Israel e os palestinos. Thrall observou que o quartel-general das Forças de Defesa de Israel ficava em uma parte residencial de Tel Aviv, ao lado de um hospital e um museu de arte. Pesquisadores de direitos humanos dizem que o Hamas controla estritamente as informações sobre as mortes de civis em Gaza para esconder suas perdas e fracassos. Embora a lista de vítimas fornecida pelo Ministério da Saúde local - a fonte para o número de 197 mortes nos últimos seis dias - geralmente seja precisa, dizem eles, o Hamas não disse quantos dos mortos são militantes ou foram mortos por mísseis do Hamas que falharam e explodiram dentro de Gaza. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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