BUENOS AIRES - O presidente eleito na Argentina, Alberto Fernández, alcançou a vitória após unificar as divisões no peronismo, mas agora enfrenta o desafio de superar o colossal abismo (ou "la grieta") que polariza os argentinos em posições que parecem irreconciliáveis.
"Acabou isso de 'nós' e 'eles'", declarou Fernández no domingo pouco antes da confirmação de sua vitória no primeiro turno, com 48% dos votos. Ele prometeu deixar a polarização para trás e convocou todos a trabalharem “juntos por um país melhor".
"La grieta" - um termo importado da geologia (fenda, racha, rachadura) usado para citar um tremor e rompimento definitivo - expõe os acalorados debates entre peronistas e antiperonistas, progressistas e conservadores, neoliberais e estatistas.
"A 'grieta' é como dizer que 'se você não está comigo, você é meu inimigo'. Isso nos faz mal", disse María Teresa Iriarte, uma enfermeira aposentada de 75 anos que viveu a ditadura (1976-1983), o radicalismo (socialdemocracia) e o peronismo.
Consagração da ‘grieta’
Embora sempre tenha existido ao longo da história argentina, a "grieta" se consagrou como tal durante o governo da ex-presidente Cristina Kirchner (2007-2015), agora vice-presidente eleita.
Apoiada por multidões, Kirchner também era detestada por muitos setores que a criticavam por suas políticas econômicas, seu estilo autoritário de governar e que a consideravam um símbolo de corrupção para o país.
Estas paixões evocam os sentimentos de amor e ódio provocados pela também mítica Eva Perón e pelo próprio Juan Perón, fundador do peronismo, o maior movimento político argentino, nascido em 1945.
Segundo o sociólogo Agustín Salvia, diretor do Observatório da Dívida Social Argentina, trata-se de uma "construção político-comunicacional que não necessariamente representa as vontades sociais".
Salvia apontou que as classes média e alta "sentem que fazem parte de um lado da 'grieta'". Defendem políticas liberais e se autopercebem como os representantes da República, enquanto, do outro lado, estão os peronistas e progressistas que se concentram em políticas mais distributivas, por exemplo.
"Não está claro que um (lado) seja a corrupção e o outro a anticorrupção. Tampouco é claro que o governo de Mauricio Macri tenha sido estritamente liberal e que o de Cristina lutava pela justiça social", disse o pesquisador da Universidade de Buenos Aires.
Buscando o centro
"Nessa radicalização, montou-se o que depois foi o macrismo", afirmou o cientista político Pablo Touzon, coautor do livro La grieta desnuda ("O racha exposto", em tradução livre). Ele se refere ao projeto de Macri, que assumiu em 2015 e deixará o governo no dia 10 de dezembro.
Segundo Touzon, esta polarização política "se desenvolveu em muitos lugares do mundo", a partir da grande recessão de 2008 e se cristalizou em figuras como o presidente americano, Donald Trump, o venezuelano Nicolás Maduro, ou o brasileiro Jair Bolsonaro.
"A Argentina está tentando encontrar seu centro. Diante desta crise econômica e do colapso do macrismo, bem poderia ter sido eleito presidente um Bolsonaro ou um Maduro. A Argentina, nesta união do peronismo, conjurou esse perigo", advertiu Touzon.
Cristina Kirchner: fator surpresa
Cristina Kirchner, que mantinha um forte apoio, mas também uma alta rejeição, surpreendeu há alguns meses ao desistir de sua candidatura e escolher para liderar a chapa Alberto Fernández, seu ex-chefe de gabinete. Eles se distanciaram em 2008 e depois se reconciliaram.
Nesta campanha, "os peronistas entenderam que, com o racha, não apenas não poderiam ganhar as eleições, mas que não poderiam governar", analisou Touzon.
"La grieta" permeou a sociedade argentina, rompendo famílias e amizades. A divisão entre os argentinos "tende a ser uma tomada de posição política como se fosse uma posição no futebol, um Boca-River. Envolve valores, ideologia, mas tem muito de mito, de irrealidade", completou Salvia.
A aposentada Iriarte concorda: "Eu brigo com minha vizinha pelos políticos, mas eles estão tomando mate juntos. Riem de nós".
Relação com a Venezuela chavista
Durante os governos kirchneristas, os argentinos mantiveram uma relação estreita com a Venezuela chavista. É por isso que o governo alertou ao longo da campanha eleitoral que a Argentina corria o risco de ter o mesmo viés ideológico que o país caribenho, que passa por uma grave crise política, econômica e social há anos - caso Kirchner voltasse ao poder.
O governo Macri também criticava a suposta conivência de Fernández - que foi chefe de gabinete de ministros tanto de Cristina Kirchner como de seu marido, Néstor Kirchner (2003-2007) -, com o presidente venezuelano, Nicolás Maduro.
Apesar de Fernández ter se mostrado em julho “muito preocupado” com o “viés autoritário” na Venezuela, o agora presidente eleito ressaltou que, se chegasse ao poder, sairia do Grupo de Lima - aliança de países que não reconhecem Maduro como presidente e apoiam o líder opositor Juan Guaidó - ao qual acusou de fomentar “uma posição intervencionista” na Venezuela.
Fernández preferiu então se aproximar do Mecanismo de Montevidéu, formado por Uruguai, México, Bolívia e Comunidade do Caribe, buscando impulsionar o diálogo político no país caribenho para obter uma saída que não fosse a intervenção no país.
Acordo Mercosul-União Europeia
No fim de junho e após décadas de negociações, o Mercosul - composto por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai - assinou um acordo comercial com a União Europeia (UE), o qual desde o começo foi questionado por Fernández em razão das desvantagens que poderia acarretar a seu país.
Ainda que, em um primeiro momento, não se tenha discutido retirar a Argentina do tratado - que para entrar em vigor deverá ser aprovado pelos países de ambos os blocos -, o peronista lançou várias críticas ao seu conteúdo e questionou inclusive se as negociações haviam sido encerradas definitivamente.
Em diversas ocasiões, Fernández afirmou que, caso chegasse à presidência, cuidaria para que os acordos fossem fechados de forma favorável à Argentina.
Brasil de Bolsonaro
O Brasil é o principal sócio comercial da Argentina. Durante seu tempo na presidência, Cristina Kirchner e Alberto Fernández mantiveram uma afinidade ideológica muito próxima com os presidentes brasileiros Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) e Dilma Rousseff (2011-2016).
Com a chegada de Macri à presidência, as relações bilaterais com o Brasil seguiram boas, mas desta vez com os conservadores Michel Temer (2016-2018) e Jair Bolsonaro, que este ano chegou a alertar para um possível êxodo de argentinos ao Brasil caso Fernández vencesse a eleição.
As acusações de corrupção e a posterior condenação a 8 anos e 10 meses de prisão a Lula levaram Kirchner, que enfrenta diversas acusações, a comparar sua situação com a do ex-presidente brasileiro, ao considerar que os dois são políticos perseguidos.
Fernández já afirmou em diversas ocasiões que a relação com o Brasil é importante o suficiente para qualificar Bolsonaro como um “presidente da conjuntura”.
Estados Unidos
Macri, que sempre se vangloriou de ter vinculado novamente a Argentina ao mundo após o isolamento, segundo ele, sofrido durante o kirchnerismo, manteve em seu governo uma boa relação com os Estados Unidos, tanto sob a presidência de Barack Obama como de Donald Trump.
Convencido de que a Argentina está muito condicionada pelas políticas americanas, Fernández acredita que precisa alcançar um “vínculo maduro” com os EUA.
Com a volta do peronismo à Casa Rosada, ainda não se sabe como se dará a condução da geopolítica regional da Argentina, com Fernández mais convencido da unidade latino-americana do que da abertura indiscriminada com o restante do mundo. / AFP e EFE