Os efeitos e as consequências da antidiplomacia brasileira

Com a política externa atual, Brasil tem chances remotas de conquistar qualquer tipo de êxito real na reunião ministerial da OCDE, em Paris, e na Conferência da Nações Unidas para a Mudança do Clima (COP-26), em Glasgow

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Por Hussein Kalout
Atualização:

A "política exterior" do governo Bolsonaro está colhendo o que plantou: o ostracismo nas relações internacionais, o desprestígio nos foros multilaterais, o embaraço nas relações bilaterais. Apesar de uma retórica aparentemente menos estridente no Itamaraty, o mundo inteiro sabe que o governo segue sendo o mesmo e a sua política internacional não se alterou um milímetro de sua inarredável distopia. Esse é o segredo de polichinelo de nossa antidiplomacia.

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O recente discurso do presidente da República na ONU apenas confirmou o que todos já sabiam: o Brasil segue na contramão do mundo. Tendo como pano de fundo o imobilismo e a absoluta incapacidade de recuperar credibilidade até o início da campanha eleitoral no Brasil, a tragédia de nossa antidiplomacia ainda tem dois atos neste ano: a reunião ministerial da OCDE e a Conferência da Nações Unidas para a Mudança do Clima (COP-26). Em ambos, o país tem remotas chances de ter qualquer tipo de êxito real.

Enquanto o governo Bolsonaro estiver no poder, os países europeus e, em particular, França e Alemanha, não apoiarão a postulação brasileira à OCDE. Adiciona-se a esse bloco de resistência, nada mais e nada menos, do que a maior potência do mundo, os EUA de Joe Biden, apesar de suas declarações ambíguas ditadas pelo pragmatismo. Com esse nível de resistência, a narrativa ufanista do governo, do Itamaraty e da nossa delegação em Paris não passará de um lindo sonho de uma noite de verão. Uma história da carochinha.

Presidente brasileiro Jair Bolsonaro fala na Assembleia da ONU Foto: Photo by POOL / AFP

A recente ida do chanceler brasileiro a Paris para participar da reunião da OCDE em nada mudará esse cenário. A recorrente ideia espalhada na mídia de que a possível entrada de alguns países nessa rodada de admissões limparia o trilho para o Brasil ser o próximo da fila é pura falácia. Trata-se de vender uma retórica amadora e distante da realidade dos fatos. A recusa do chanceler francês Jean-Yves Le Drian em receber o seu homólogo brasileiro - embora tenha topado receber todos os demais pedidos de audiência à margem da cúpula ministerial da OCDE, é uma pá de cal na esperança de avanços concretos no pleito brasileiro de ingressar na organização.

Além disso, o pedido de encontro endereçado ao Quai d’Orsay revela incompreensão da atual administração do Itamaraty da realidade política, destoando de uma diplomacia profissional com tradição de respeito e discernimento. As relações bilaterais entre a França e o Brasil tocaram o fundo do poço. Não é preciso ser nenhum gênio para concluir que o governo francês não tem nada a ganhar em receber o chanceler brasileiro. Pelo contrário, seria auferir legitimidade a um governo hostil e a uma diplomacia que se colocou como pária nas relações internacionais, situação de resto evidente inclusive pela completa ausência de interlocução do embaixador brasileiro em Paris junto ao governo francês, sintetizando à perfeição o grau de desapreço do governo Macron para com o governo Bolsonaro.

Emmanuel Macron, presidente da França, e Jair Bolsonaro, presidente do Brasil Foto: Clauber Cleber Caetano/PR

Inconsequente e sem faro político, ao pedir a audiência com o ministro das relações exteriores da França, o governo tentou passar uma borracha na humilhação imposta ao ministro do exterior francês por Bolsonaro, que cancelou o encontro bilateral para cortar o cabelo numa "live" transmitida pela internet. Um ato de agressividade diplomática incomensurável. Pior do que a passada de borracha, foi não levar em consideração o tremendo impacto negativo que representou a acolhida, em dezembro passado, no Palácio do Planalto, de Nicolas Dupont-Aignan, político da extrema direita francesa do partido Debout La France, pelo mandatário brasileiro. Imaginar que esses dois atos não entrariam no cálculo de Paris e no cômputo negativo das relações entre os dois governos é inconcebível - o governo e o chanceler brasileiro ficaram despidos em praça pública.

Já no que diz respeito à Conferência da Nações Unidas para a Mudança do Clima (COP-26), a realizar-se em novembro próximo, em Glasgow, o Brasil entra em campo como vilão mundial do meio ambiente. Da COP-25, na Espanha, para a COP-26, na Escócia, nada mudou para melhor. O desmatamento não refluiu, assim como o desmonte do aparato de fiscalização segue na mesma toada.

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Queimada na Floresta Amazônica. Foto: Adriano Machado/Reuters - 28/09/21

Enquanto os números não provarem que houve refluxo no desmatamento e enquanto não se verificar a implementação de uma política pública de qualidade para proteção da Amazônia, as palavras do governo não terão valor algum. Vale lembrar que no evento convocado por Joe Biden sobre o clima, no início do ano, o presidente brasileiro leu um discurso que nem ele próprio acreditava. A prática, nos meses subsequentes, revelou o abismo que havia entre o palavrório e o resultado averiguado. Nesse sentido, é difícil acreditar em propostas concretas e numa participação exitosa da delegação do governo Bolsonaro na COP-26.

A "política externa" do governo Bolsonaro depois de abril do ano que vem estará em ponto morto - nada diferente do que foram os quase três anos deste governo até aqui. Aveludar a retórica sem mudar os fundamentos da política exterior de turno é exercício frívolo, já que não produz resultados por falta de credibilidade e substrato real que lhe dê sustentação. Essa pantomima não resiste ao peso da realidade e dos fatos, esgota-se em sua mímica inócua para a defesa dos interesses reais, eficaz apenas em aprofundar a irrelevância e a comiseração dos que ainda nutrem simpatia por nosso sofrido país. É o preço exorbitante que cobra a implementação de uma antidiplomacia, amadora e inepta na defesa do interesse nacional, porém altamente eficaz na destruição de nossa reputação, credibilidade e influência na região, nos organismos internacionais e junto aos nossos principais parceiros.

*É cientista político, professor de Relações Internacionais e pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2017-2018)

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