'Os jovens já entendem que a democracia se pauta na igualdade', diz professora

Especialistas debatem a participação e os direitos conquistados pelas mulheres na Primavera Árabe

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Por Bruna Ribeiro
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SÃO PAULO - A possível ascensão de governos islâmicos nos países que foram varridos pelas revoluções da Primavera Árabe colocou em questão o futuro de uma região marcada pela rigidez das ditaduras e da religião. Pela primeira vez, o Oriente Médio e o norte da África viram nas mãos a chance de construir uma democracia aos seus próprios moldes, até mesmo diferente do modelo ocidental, que inclui todas as complexas questões históricas e culturais da região. Nesse pacote, veio também o direito das mulheres. O temor de uma regressão chegou junto com a possibilidade de governos islâmicos.

 

 

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A ideia da volta da poligamia na Líbia e rumores de estupros e "testes de virgindade" na praça Tahir, na capital do Egito, relatadas pela imprensa internacional, alarmaram as militantes, que foram às ruas ao lado dos homens, quebrando o clichê da mulher árabe passiva e oprimida. "Eu acho muito difícil [que os direitos estejam ameaçados], porque o que acontece é mais uma questão cultural do que normativa ou islâmica", disse Arlene Clemesha, coordenadora do Núcleo de Estudos Árabes da Universidade de São Paulo (USP).

 

A professora explicou ao estadão.com.br que até mesmo no Irã, onde se aplica a sharia (a lei que vem do Alcorão), a prática da poligamia, por exemplo, ocorre muito pouco. "Acontece mais nos países do Golfo, em uma elite muito rica ou em uma camada muito pobre. Então é uma questão cultural. As mulheres não aceitam; não é bem visto na sociedade", diz.

 

Ao analisar a repressão às mulheres no atual momento de transição democrática e os temores de uma regressão em seus direitos, a professora Maristela Basso, também da USP, lembra do livro "Mal estar na civilização", de Sigmund Freud. No texto, o psicanalista discute o fato de a cultura produzir um mal-estar nos seres humanos, devido à incoerência entre os impulsos passionais e a civilização. "Toda vez que você vê um movimento para frente, como 'mulheres querem direitos', você vê um movimento que vem abafar”, comentou a professora. "Então os militares cometem crimes que são sentidos pelas mulheres, contra a honra delas, como o estupro e o assédio moral e físico".

 

Antídotos

 

Apesar disso, Maristela acredita que o sistema vai encontrar seus próprios antídotos para tal situação. "Os próprios rebeldes que lutaram nesse capítulo da história vão encontrar remédios para furar essas anomalias, essas patologias que sempre haverá".

 

Segundo as duas professoras, a constituição de um governo democrático também impediria tal retrocesso. "Se os governos forem minimamente democráticos, isso significa que a mulher vai ter voz, participação e vai exigir seus direitos. Ela não vai permitir", opinou Arlene Clemesha. "Ela não vai permitir”, enfatizou, referindo-se a um eventual retrocesso. Atualmente há, de acordo com a professora, movimentos feministas islâmicos, compostos por grupos de mulheres que reinterpretam o Alcorão.

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Para a especialista, a perda dos direitos só poderia acontecer caso houvesse um contra golpe. "Se você pega um caso em que o governo se forma com características autoritárias, aí pode ser". Apesar de as conquistas não estarem escritas no papel; ou seja, nas leis internas, para Maristela Basso, tudo está no inconsciente e consciente coletivo das pessoas que levaram esse movimento para frente. "Os jovens, sejam homens ou mulheres, já reconhecem que a democracia se pauta na igualdade, no respeito à dignidade da pessoa humana e nos direitos humanos", disse a professora.

 

"Eles querem que uma constituição seja escrita observando esses princípios. Se esse retrocesso ficar caracterizado nos documentos, na constituição a ser escrita, provavelmente teremos uma revolta", sugeriu. "De novo as pessoas vão às praças, aos movimentos pacíficos ou às armas. Voltar para trás eu acho muito difícil".

 

Momento pode ser favorável

 

Sobre o futuro, Maristela chega a considerar que a situação da mulher no Oriente Médio e no norte da África pode até melhorar. Mas "melhorar" não significa "se ocidentalizar", enfatiza. "Elas não querem ser como as ocidentais. Porque, nós, ocidentais, lutamos para termos os direitos dos homens e de certa forma para sermos como eles", opina a professora. "Mas a gente se masculinizou nesse processo. Elas têm uma percepção diferente. Elas querem ser mulheres, fazer suas escolhas, mas querem continuar usando a burca, o rosto escondido. Isso não significa que tenham menos direitos".

 

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O professor da pós-graduação de Direito Internacional, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, Henrique Matos, considera que as sociedades muito baseadas na sharia têm uma tendência de ficarem apegadas às regras, que são antigas. "Existe um caminho muito difícil para você atingir a democracia e a melhoria da condição das mulheres nesses Estados”, disse Matos. "Não que seja impossível, mas há um longo trabalho a se fazer. Tudo vai depender dos próximos movimentos".

 

Talvez o Oriente Médio esteja mesmo distante de se assemelhar à democracia ocidental de Alex Tocqueville - e talvez nem queira isso. "Não essa, mas outra democracia é, sim, possível. Eu não conheço, não estudei nos livros de direito constitucional, não está lá escrito como ela vai ser, porque ela vai ser construída pela história", afirmou Maristela. "Eles construirão um modelo democrático diferente do nosso, no qual há estado de direito, bem estar social e respeito aos direitos humanos".

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