PUBLICIDADE

Os limites da sharia

No momento em que uma Constituição decisiva é gestada no novo Egito, mulheres e cristãos coptas estão apreensivos

Por ROGER COHEN - COLUNISTA
Atualização:

Se o Egito sob o comando da Irmandade Muçulmana é o experimento mais importante do mundo de como conciliar Islã e modernidade democrática, a Constituição do país, em fase final de elaboração, é o ponto crucial desse teste. Quase 25% dos árabes vivem no Egito. Eleições vêm e vão; constituições mudam muito menos. Essa é crucial. Há sinais aziagos. O processo, que deveria ser o mais inclusivo e transparente possível, tem sido um fiasco de avanços e recuos desde o momento em que Hosni Mubarak foi deposto há 20 meses. A atual Assembleia Constituinte de 100 membros é a substituta de uma anterior dissolvida por ordem judicial. O Parlamento que a nomeou também foi por sua vez dissolvido. Durante um bom período de tempo, os militares tentaram orquestrar o processo até aceitar a derrota, suplantados por islamistas que hoje superam os liberais em número entre os constituintes. Muitas mulheres e a maioria dos cristãos coptas constituem eleitorados hoje apreensivos do novo Egito. Alguns liberais, que formaram um novo partido chamado Al-Dostur, ou "A Constituição", acreditam que em razão das falhas existentes é fundamental uma transformação completa do processo. Os egípcios, exauridos pela montanha-russa pós-Mubarak, estão demasiado exaustos para se importar com o que está havendo. Algumas pessoas se dizem enjoadas a ponto de não conseguir acompanhar o noticiário. A desconfiança corre solta. "Os islamistas dominam e eles não querem tão somente um Egito islâmico, querem um califado", declarou-me enfurecida Manal El-Tibi, uma ativista de direitos humanos. Ela abandonou a Assembleia Constituinte no mês passado, convencida de que um processo que começou com uma busca de consenso se tornou irremediavelmente distorcido. "Eu estava na cozinha e vi todos os detalhes sujos." Suas preocupações, como as de muitas outras mulheres, centram-se no que é agora o Artigo 68 (antigo Artigo 36). Este diz: "O Estado pode tomar todas as medidas para estabelecer a igualdade de mulheres e homens nas áreas da vida política, cultural, econômica e social, e também em todas as outras áreas, contanto que ela não conflite com os preceitos da sharia islâmica". A última cláusula significa dizer, "Nós nos comprometemos com a igualdade entre sexos exceto quando não nos comprometermos". Ela precisa ser derrubada.A expressão "preceitos da sharia islâmica" não oferece nenhum espaço de manobra. Ela contradiz uma provisão em outra parte do anteprojeto de Constituição que diz: "Todos os cidadãos são iguais perante a lei, iguais em seus direitos e deveres públicos, não pode haver discriminação entre eles com base em sexo". Ela contraria a plataforma eleitoral da própria Irmandade Muçulmana, que se comprometia com um Estado "com base no princípio da cidadania, em que todos os cidadãos desfrutam de direitos iguais". Ela abre a porta para uma pressão para baixar a idade de casamento (hoje em 18 anos), descriminalizar a mutilação genital feminina, sacramentar a herança discriminatória e consentir na violência doméstica. Alguns xeques salafistas defendem o casamento já no começo da puberdade."Os salafistas estão obcecados por esse artigo, mas, é claro, sua visão de mundo é diferente da visão dos membros da Irmandade, que são pragmáticos com uma base conservadora e querem pelo menos a aparência de uma adesão dos liberais", disse Heba Morayef, que trabalha na Human Rights Watch no Egito. É uma distinção importante. A ira de El-Tibi faz sentido no contexto dos ultraconservadores salafistas, mas depende de uma caricatura da muito maior Irmandade, cuja busca de um meio caminho é real. Liberais importantes como Amr Moussa, o ex-secretário-geral da Liga Árabe, e Ayman Nour, continuam na Assembleia Constituinte convencidos de que ainda é possível um acordo. Os sinais de um acordo são evidentes. O Artigo 2 do anteprojeto espelha a Constituição de 1971 e diz que "os princípios da sharia são a principal fonte da legislação". A existência dessa cláusula delimitadora é uma razão adicional para derrubar o Artigo 68, que usa o fraseado muito mais limitador de "preceitos da sharia". A questão crucial levantada pelo Artigo 2 é: que corpo de pessoas atribui esses "princípios"? Um anteprojeto anterior dizia que a única autoridade deveriam ser os clérigos da Al-Azhar, a instituição islâmica suprema do país - uma ideia com o potencial de colocar o Egito num curso iraniano. A mais recente, porém, diz apenas que a Al-Azhar precisa ser "consultada", um fraseado que deve deixar a atribuição a tribunais laicos. A história dos últimos 20 meses no Egito esteve cheia de avanços e recuos. Nenhuma autoridade isolada, nem sequer os militares, conseguiu impor sua vontade. Agora é crucial que a Irmandade e o presidente Mohamed Morsi mostrem um espírito de compromisso. Só ele pode sacramentar uma Constituição que respeite as mulheres e os homens, o estado de direito, um Judiciário independente e princípios de não discriminação. Se a Constituição não refletir a unidade das forças seculares e islâmicas que derrubaram Mubarak, ela será um convite à violência. Um tribunal ainda poderia dissolver a Assembleia Constituinte e isso poderia agradar aos liberais. Mas começar de novo pode não ser a melhor opção. O perfeito pode ser inimigo do bom. Um novo atraso no estabelecimento do arcabouço legal do novo Egito solapará a confiança e postergará as eleições parlamentares. Morsi tem autoridade para reformar o comitê num impasse. "Se a Irmandade não se alinhar agora com o senso comum e os valores modernos teremos um completo caos", disse-me Mohamed ElBaradei, o laureado com o Prêmio Nobel que rejeitou o processo todo. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.