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Os órfãos que não precisavam ser salvos

Por Lydia Polgreen
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Em 1890, o rei Leopoldo II da Bélgica pediu a um de seus funcionários coloniais para criar orfanatos no vasto território africano que governava como seu feudo pessoal, o Congo. O único problema de seu plano é que não havia órfãos. O conceito mal existia no Congo e em boa parte da África. Esse é um continente onde milhares de grupos étnicos compartilham tradições segundo as quais uma criança cujos pais morreram é responsabilidade da família e da comunidade. Mas, o problema de Leopoldo foi prontamente resolvido - seus homens seqüestravam garotos e os despachavam para os "orfanatos", onde recebiam catecismo, treinamento militar e, se tivessem sorte, batismo. Como narra o historiador Adam Hochschild em seu livro O Fantasma do Rei Leopoldo, a maioria dos garotos acabava se tornando soldado do exército nativo de Leopoldo. Para muitos africanos, a caça aos órfãos de Leopoldo é apenas um exemplo flagrante de uma série de feridas históricas profundas. Esse histórico ajuda a explicar o ceticismo e ultraje com que foram saudados os esforços da Arca de Zoé, ONG francesa acusada de tentar seqüestrar 103 crianças chadianas. Desde o início do envolvimento europeu na África, o Ocidente serviu-se de crianças do continente - como bestas de carga, como soldados para combater seu próprio povo ou como almas que precisavam ser salvas pela civilização. Às vezes, como ilustra o exemplo no Congo, as três coisas. Mas o caso da Arca de Zoé está envolto numa teia mais complexa, de intenções aparentemente boas desviadas e a percebida exploração do sofrimento de pessoas vulneráveis, e uma profunda incompreensão cultural. O escândalo revela como os africanos podem ficar irritados quando "auxiliadores" ocidentais violam as tradições e o senso de soberania do continente. A Arca de Zoé parece ter incorrido no mesmo problema que Leopoldo: em muitas sociedades africanas, encontrar um órfão não é fácil. Muitos países africanos têm leis sobre adoção que refletem um forte desconforto com o conceito tal como ele é entendido no Ocidente. Uma conseqüência disso é que relativamente poucas crianças africanas são adotadas a cada ano. Em países muçulmanos, a adoção é proibida. O episódio atual tem um agravante particular porque a Europa vem criando regras cada vez mais rígidas para impedir a emigração de africanos. Levar crianças de avião em segredo enquanto milhares de africanos se afogam no Atlântico tentando emigrar para a Espanha tem um gosto de hipocrisia para muitos africanos. *Lydia Polgreen é repórter do ?New York Times?

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