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Os perigos do poder na Argentina

Quem detém o poder sente-se psicologicamente invisível e, assim, liberado do olhar dos outros, faz o que lhe dá na telha

Por Alejandro Katz - La Nación
Atualização:

O poder, que se acreditava vestido com a mais sofisticada e convincente retórica, estava nu. Faz tempo que essa nudez começou a se tornar patética: argumentos contraditórios, aliados inexplicáveis, decisões indefensáveis. Cada vez mais vozes o assinalavam, com frequência e intensidade crescentes. Embora o governo continue se exibindo como se o seu relato fosse uma roupagem magnífica, suas ações estão em questão.Polifônicas, desiguais tanto pelos interesses quanto pelos valores que manifestam, essas críticas são prova da crescente distância entre os discursos e os atos oficiais, de um lado, e de outro, a ideia que diversos atores da sociedade têm sobre os modos como desejariam viver juntos. Não se trata, evidentemente, de que o governo defenda os interesses de uma maioria contra a vontade predatória de uma multidão de minorias inescrupulosas. As críticas, ao contrário, chegam das mais variadas tradições políticas, das mais diversas esferas ideológicas, de posições contraditórias com respeito à distribuição da renda nacional, e expressam setores heterogêneos e radicalmente diferentes entre si. A maioria delas merece atenção: enuncia pontos de vista racionais e legítimos, e exige ser objeto de exame e debate.Habitualmente, as objeções à ação do governo questionam decisões particulares, tomadas intempestivamente. Mas se elas remetem fundamentalmente a aspectos concretos é porque não é possível realizar uma crítica geral da política oficial dado que esta coisa não existe: esse governo não produz política, produz fatos.O que caracteriza o conjunto das ações do governo - e subjaz ao conjunto das críticas - não é nem sua ideologia, nem sua política, nem, aliás, seu "projeto" inconsistente: é sua conduta. Uma conduta cada vez mais fora de controle. Não somente fora do controle republicano, mas fora do autocontrole que se espera dos que concentram o poder do Estado.Como mostrou o sociólogo Norbert Elias, o Estado é resultado de um longo processo civilizatório que concentrou em si o monopólio da violência como o único modo de reduzir a incerteza com relação ao futuro. Concentrar o monopólio da violência é concentrar o poder. Com isso, o processo da civilização produziu os próprios monstros, dado que o poder inevitavelmente corrompe. Não no sentido de propiciar a obtenção de um benefício econômico indevido, mas no mais profundo de depravar, prejudicar ou apodrecer.Loucura. A relação entre poder e loucura, indagada pela filosofia e explorada pela literatura, foi comprovada pela psicologia mediante numerosos e sistemáticos estudos experimentais. Adam Galinsky explica de que modo o poder corrompe os processos mentais dos que o detêm, o que provoca dificuldades para assumir o ponto de vista dos outros: o poderoso deixa de compreender como os demais veem as coisas, o que pensam e como sentem. "Os poderosos" - escreve Galinsky - "são mais propensos a enganar e quebrar as regras, até mesmo as que eles mesmos estabeleceram. Quem detém o poder sente-se psicologicamente invisível. Assim, liberado do olhar dos outros, faz o que lhe dá na telha. Por isso, os poderosos se sentem com direito de fazer tramoias e tomar o que querem. Esse sentimento de 'ter direito' os torna hipócritas: ao mesmo tempo em que agem imoralmente, sentem que podem exigir dos demais um padrão estrito de moralidade e autocontrole."Outros pesquisadores provaram que a acumulação de poder vem acompanhada de uma demanda crescente de atenção sobre si mesmos e de condutas cada vez mais rígidas, que os poderosos se preocupam principalmente com seus desejos e seu bem-estar e eles perdem a sensibilidade com respeito às implicações sociais de sua conduta. Concentrados na ação orientada para o prosseguimento de grandes metas, os poderosos, indiferentes ao ponto de vista dos demais, mergulham na busca de seus objetivos sem reconhecer nenhuma restrição. Estudou-se também a tendência do poder à objetivação dos demais, isto é, a ver as pessoas somente em termos das qualidades que servem aos fins e interesses pessoais, e a utilizá-las como ferramentas para alcançar esses fins. Incapazes de levar em conta o ponto de vista dos outros, concentrados na realização de seus objetivos, os poderosos também têm a tendência de criar estereótipos. O conjunto - ignorância da perspectiva alheia, propensão a considerar os outros como ferramentas para a realização de seus fins, e a criação de estereótipos - é uma caixa de ferramentas cognitiva que o poderoso utiliza para manter o comando.Assim como o processo da civilização transferiu para o Estado o monopólio da violência, ele criou instituições cujo fim é, quando menos, duplo. Por um lado, elas ensinam os indivíduos a controlar sua conduta. As instituições simbólicas e culturais, tais como os "modos à mesa" ou o "comportamento no dormitório" aspiram, sobretudo, a regular as emoções individuais, a estabelecer controles emocionais sobre a conduta das pessoas, para conseguir que cada qual adapte seu comportamento às necessidades do conjunto. Mas a civilização também construiu instituições destinadas especificamente a controlar o poder, e, particularmente, o poder do Estado. Como ceder ao Estado o uso da violência significa também lhe outorgar uma quota desmesurada de poder, a necessidade de limitá-lo tornou-se imperiosa.Leviatã para Hobbes, ogro filantrópico segundo Octavio Paz, esse Estado exibiu seus traços mais brutais quando aprendeu que apelar para a paixão era o modo mais eficaz de transpor os limites que a razão pretendia estabelecer. Nossa modernidade dá testemunhos suficientes do resultado que a excitação das paixões pode provocar sobre a sociedade, especialmente quando um líder fora do controle das instituições perde também o controle da própria conduta.É verdade que as grandes catástrofes só podem ser causadas por grandes líderes em situações históricas e sociais excepcionais. Na mediocridade de um presente no qual se enunciam batalhas épicas, mas só se exibem sapatos de salto alto, a falta de limites do poder provoca pequenas misérias cotidianas. Mas essas misérias cotidianas são destrutivas do futuro comum: a relação inversa entre o poder e a capacidade de assumir o ponto de vista alheio podem permitir ao poderoso realizar objetivos de curto prazo, mas conduzem à diminuição do horizonte futuro. O processo civilizatório - custoso, exigente, cheio de sacrifícios para todos - perde pouco a pouco seu principal sentido: reduzir a incerteza com relação ao futuro, tornando a sociedade anômica e permitindo que numerosas formas de violência ocupem o espaço público; formas de violência econômicas, sociais, ambientais, políticas, discursivas, mas também físicas.Subjugado pela sedutora sociedade do espetáculo - essa inversão perversa da cultura do diálogo -, o governo ignora o pensamento de longo prazo, seduzido, como está, pela ilusão de que onde termina o palco no qual realiza seus truques, uma plateia infinita o ovaciona desde a obscuridade. Conquistado pela lógica do prestidigitador ou do ilusionista, o governo acredita que a arte de governar consiste em realizar uma sucessão de truques - ou tramoias - graças às quais aparecem e desaparecem direitos e patrimônios, amigos e inimigos, notícias e silêncios.Incapaz de articular um discurso coerente durante uma função completa, o kirchnerismo pratica uma longa série de números isolados e vistosos que, enquanto atraem a atenção do público, lhe permitem conservar o centro do palco. A escuridão da sala não lhe deixa perceber, no entanto, que o auditório foi se esvaziando, e o espetáculo só é aplaudido pelo escasso público das primeiras filas de uma plateia integrada por ridículos admiradores de gestos desatinados. "O poder" - diz Galinsky - "é como um perfume forte e penetrante. Ele não só intoxica o portador, como também captura os que estão muito perto dele."O espetáculo seria apenas triste e decadente não fosse o fato de envolver o poder do Estado. Um poder que derrubou tanto as instituições que devem controlá-lo quanto a capacidade de autocontrole de sua conduta. O paradoxo do poder é um real dilema para o caráter. Quando o desprezo pelas preocupações, as emoções e os interesses dos demais se faz contínuo, o poderoso provoca inimizade, amargura e rebeldia. "As funções supremas da coordenação do Estado" - escrevia Norbert Elias - "obrigam a uma contenção contínua e rigorosa."Mais uma vez, a sociedade argentina foi indolente para exigir do poder uma prestação permanente de contas que teria evitado que ele perdesse o controle. Mais uma vez, a sociedade argentina entregou o Estado sem regular o poder. Aprender a evitar que isso ocorra novamente será, talvez, a principal tarefa que deixará este novo ciclo. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK* ALEJANDRO KATZ É EDITOR

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