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Intenção de Putin de invadir a Ucrânia estava em seu discurso de segunda; leia a análise

Em uma apaixonada imprecação discurso sobre a Ucrânia, líder russo desnudou descontentamentos antigos e novos

Por Max Fisher
Atualização:

WASHINGTON - Em um longo e acalorado discurso, na segunda-feira, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, centrifugou uma narrativa cujas implicações se espalham para muito além de seu propósito declarado de reconhecer a independência de dois territórios ucranianos controlados por separatistas com apoio de Moscou. 

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O discurso de Putin foi repleto de nacionalismo russo linha-dura, paranoia furiosa em relação ao Ocidente, alegações sem fundamento sobre uma agressão ucraniana, um senso de perda de orgulho imperial que beira uma reivindicação e, acima de tudo, invocações da história, grande parte dela distorcida ou fabricada. Um preâmbulo da invasão da Ucrânia

Ainda que seus comentários possam ter soado incoerentes para ouvidos ocidentais,Putin pôde, na verdade, ter articulado o que representa uma série calculada de justificativas para uma nova invasão à Ucrânia mirando o público russo, cujo apoio ele necessitará para sustentar sua agressão. O que se segue é uma anotação concisa de várias passagens cruciais que expressam justificativas abertas e veladas de Putin para a guerra. 

O presidente russo, Vladimir Putin, fez nesta semana um longo discurso televisionado Foto: Thibault Camus / POOL / AFP

Desafiando Fronteiras 

Desde tempos imemoriais, os indivíduos que vivem no sudoeste do que tem sido historicamente território russo chamaram a si mesmos de russos e cristãos ortodoxos. 

Então, começarei com o fato de que a Ucrânia moderna foi inteiramente criada pela Rússia ou, para ser mais preciso, pela Rússia comunista, bolchevique. Esse processo iniciou-se praticamente logo após a revolução de 1917, e Lênin e seus colaboradores o realizaram de uma maneira extremamente dura para a Rússia — separando, dissociando o que é historicamente território russo.

Putin está repetindo seu antigo argumento de que as fronteiras da Ucrânia são uma criação artificial dos formuladores soviéticos, que de maneira injusta delimitaram território legitimamente russo dentro das fronteiras da República Socialista Soviética da Ucrânia.

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Na realidade, as fronteiras internas da União Soviética refletiam divisões culturais e políticas ancestrais, assim como o que os próprios recenseadores de Moscou constataram ser uma maioria de ucranianos étnicos naquele território, incluindo no que agora é o leste da Ucrânia.

Os comentários de Putin, que constituíram sua justificativa para anexar a Crimeia, em 2014, sugerem uma autoridade para garantir a soberania russa sobre parte do leste da Ucrânia ou também sobre toda a região, mesmo que agora ele esteja reconhecendo a independência apenas dos separatistas apoiados por Moscou que controlam parte dela. 

As repetidas menções de Putin à Ucrânia como artificial e suas afirmações passadas de que “a Ucrânia não é nem mesmo um Estado”, como afirmou em 2008, sugerem que ele também está se reservando a opção de declarar toda a Ucrânia uma invenção histórica, o que serviria para justificar uma invasão mais abrangente. 

Uma ameaça pesada

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E hoje, a “grata prole” derrubou monumentos a Lênin na Ucrânia. Chamam isso de descomunização. Vocês querem descomunização? Muito bem, isso nos serve bem. Mas por que parar no meio do caminho? Estamos prontos para mostrar o que descomunizações verdadeiras significariam para a Ucrânia.

Putin está sugerindo explicitamente que os ucranianos deveriam ter agradecido Vladimir Lênin, o líder fundador da URSS que Putin culpa pelas fronteiras ucranianas, em vez ter derrubado estátuas da era soviética nos protestos de 2014 contra o governo pró-Moscou de Kiev. 

A referência de Putin a uma “descomunização verdadeira” sugere que ele está se preparando para apagar o que considera o verdadeiro legado de Lênin, redesenhando pela força as fronteiras ucranianas segundo deseja. 

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Restabelecendo reivindicações soviéticas

O vírus das ambições nacionalistas ainda está entre nós, e a bomba-relógio colocada no estágio inicial para destruir a imunidade do Estado à doença do nacionalismo estava acionada. Como já afirmei, a bomba-relógio era o direito de secessão da União Soviética. 

Putin apresenta-se a si mesmo simultaneamente como defensor do nacionalismo russo, por meio de alegações territoriais e sanguíneas, e como combatente contra a “doença do nacionalismo”, neste caso, a antiga luta da Ucrânia por autonomia nacional.

Essa contradição tem fundamento na obsessão de Putin com o colapso da URSS, fato ao qual ele dedica uma longa seção de seu discurso. 

É agora que radicais e nacionalistas, incluindo — e principalmente — aqueles na Ucrânia, estão recebendo crédito por ter conquistado independência. Como podemos ver, isso está absolutamente equivocado. A desintegração do nosso país unido foi ocasionada por erros estratégicos históricos por parte dos líderes bolcheviques e da liderança do PCUS, erros cometidos em momentos diferentes na construção do Estado e políticas econômicas e étnicas. O colapso da Rússia histórica, conhecida como URSS, é culpa desse fracasso. 

Putin argumenta que a Ucrânia e outras ex-repúblicas soviéticas foram manipuladas para declarar independência de Moscou por oportunistas em busca de interesses próprios. 

Na realidade, a esmagadora maioria dos ucranianos — incluindo nas regiões do leste ucraniano que Putin sugere terem sido extirpadas da Rússia contra o interesse de seus residentes — votou pelo estabelecimento de um Estado independente. 

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Esses comentários retratam o Estado ucraniano como uma criação ilegítima: um ato de roubo contra a Rússia e os ucranianos, que ainda deveriam estar sob governo de Moscou. 

E, em meio a uma escalada que causa preocupação em toda a Europa, Putin sugere que isso se aplica a todas as ex-repúblicas soviéticas. Três desses países tornaram-se membros da Otan, o que significa que a aliança está comprometida com sua defesa: Estônia, Letônia e Lituânia.

 

Um ataque contra a legitimidade

As autoridades ucranianas — eu gostaria de enfatizar isso — começaram a construir seu estatuto de Estado sobre a negação de tudo o que nos unia, tentando distorcer a mentalidade e a memória histórica de milhões de pessoas, de gerações inteiras de habitantes da Ucrânia. Não surpreende que a sociedade ucraniana tenha sido afrontada pela ascensão do nacionalismo de extrema direita, que rapidamente se desdobrou em agressiva russofobia e neonazismo.

Este é o início do argumento explícito de Putin para entrar em guerra com o objetivo de tomar partes do leste ucraniano e de seu argumento implícito para uma possível guerra contra a Ucrânia.

O próprio Estado ucraniano moderno, argumenta ele, é um tipo de ataque contra a Rússia, porque divide povos ucranianos e russos que deveriam ser unidos — e porque cultiva extremismo antirusso para justificar essa essa divisão. 

Na realidade, esses grupos étnicos e linguísticos coexistiram muito mais pacificamente do que Putin alega. Ainda que populações russófonas na Ucrânia tenham favorecido certas vezes laços políticos com Moscou em detrimento do Ocidente, a política ucraniana refletiu isso, e esses grupos têm se mostrado cada vez mais desconfiados em relação à Rússia desde 2014. 

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Essencialmente, a assim chamada escolha civilizacional pró-Ocidente feita pelas oligárquicas autoridades ucranianas não foi e não é destinada a criar melhores condições para o bem-estar do povo, mas em cuidar dos bilhões de dólares que os oligarcas roubaram dos ucranianos e mantêm em suas contas nos bancos ocidentais, enquanto acolhem respeitosamente os rivais geopolíticos da Rússia. 

Aqui, Putin estende seu revisionismo histórico a uma acusação contra a Ucrânia moderna. O governo do país, argumenta ele, não é um governo real, mas um clã de criminosos — e por este motivo não detém os direitos de um Estado soberano — e uma ameaça intrínseca à segurança russa. 

Ao exprimir seu argumento segundo a suposta ilegitimidade do próprio Estado ucraniano,Putin está sugerindo que nenhuma mudança de política ou concessão seria capaz de atenuar sua essa ameaça. Trata-se, num certo sentido, de uma declaração de que não há sentido em negociar, que Moscou não tem escolha a não ser coagir os líderes de Kiev pela força ou removê-los definitivamente. 

Uma falsa campanha ‘anti-Rússia'

A política de erradicar a cultura e a língua russas e promover assimilação continua. O Verkhovna Rada tem gerado um fluxo constante de legislações discriminatórias, e a lei a respeito dos assim chamados povos originários já vigora. Pessoas que se identificam como russas e querem preservar sua identidade, língua e cultura estão recebendo a mensagem de que não são bem-vindas na Ucrânia. 

Desde 2004, a Ucrânia tem agido, gradualmente, para elevar o status da língua ucraniana. 

Autoridades e meios de comunicação estatais da Rússia têm buscado retratar isso como parte de uma ultrajante campanha para marginalizar ou até exterminar francamente populações ucranianas de fala russa.

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Eles preferem não reconhecer isso, que não há nenhum genocídio perpetrado contra 14 milhões de pessoas.

Tais alegações, que são em grande parte fictícias, servem para justificar intervenções militares russas enquanto protetoras de populações que Moscou tem tanto direito quanto dever de defender. Elas também garantem implicitamente um direito russo de dominar o que Putin tem chamado de “mundo russo” — territórios que contêm grandes populações russófonas ou de etnia russa, que avançam através das fronteiras de antigas repúblicas soviéticas. 

Em 2014, acusações similares, apoiadas por aterradoras e falsas histórias sobre atrocidades antirrussas na Ucrânia, provocaram sentimentos generalizados anti-Ucrânia na Rússia. 

Mas desde então as opiniões na Rússia em relação à Ucrânia arrefeceram, para 45% favoráveis e 43% negativas, constatou uma pesquisa recente. Outras sondagens sugerem que a maioria não quer uma guerra franca, o que pode justificar a recente busca de Putin por renovar a indignação pública. 

Tanques russos se movimentam na região de Rostov, na fronteira com a Ucrânia Foto: YURI KOCHETKOV/EFE

Uma guerra defensiva

As autoridades de Kiev não são capazes de desafiar a escolha claramente declarada de seu povo e por este motivo optaram por uma ação agressiva, por ativar células extremistas, incluindo organizações islamistas radicais, por mandar subversivos realizar ataques terroristas contra instalações cruciais de infraestrutura e por sequestrar cidadãos russos. Temos provas concretas de que tais ações de agressão estão sendo tomadas com apoio de serviços de segurança ocidentais. 

Na verdade, isso não passa de preparações para hostilidades contra o nosso país, a Rússia.

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Essas grotescas acusações sobre conspirações ucranianas e ocidentais para atacar a Rússia são provavelmente destinadas ao público russo, definindo uma nova invasão à Ucrânia como algo necessário para defender famílias russas — em vez da busca de sublimes ambições regionais, que podem ser mais difíceis de vender. 

Mas essas alegações podem não ser inteiramente estratégicas. Após muitos anos no cargo, Putin estreitou seu alto escalão para um pequeno círculo de aduladores e comandantes de forças de segurança linha-dura, que, acredita-se, lhe dizem apenas o que ele quer ouvir. 

É possível que Putin acredite sinceramente em parte das ameaças estrangeiras que ele denuncia, talvez especialmente as relativas à Otan. 

O Exército ucraniano está esperando para entrar na Otan. (…) O Ocidente tem explorado o território da Ucrânia como um futuro palco, um futuro campo de batalha, destinado a se contrapor à Rússia.

Putin tem lutado há muito tempo para evitar que mais vizinhos da Rússia se juntem à Otan. Ao longo das negociações sobre a atual crise, ele insistiu para que a Otan revogue a declaração de 2008 de Washington de que a aliança consideraria a adesão da Ucrânia e da Geórgia. 

É difícil dizer com certeza se as alegações de Putin sobre uma conspiração da Otan para atacar a Rússia representam sua crença sincera ou são um exagero para efeito político. 

Tanques russos parados na fronteira com a Ucrânia, em meio à tensão com a Rússia Foto: EFE/EPA/STRINGER

Sanções inevitáveis 

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Mais uma vez, eles nos ameaçaram com sanções. Eles ainda as imporão, à medida que nosso país se fortalece e se torna mais poderoso. Eles sempre encontrarão uma desculpa para introduzir mais sanções, independentemente da situação da Ucrânia. Seu único objetivo é conter o desenvolvimento da Rússia.

Putin está dizendo aos russos que não há sentido em restringir a política externa russa para evitar sanções que virão de qualquer maneira — e disso, caso os russos sofram sob maior isolamento econômico, Putin e suas políticas não terão culpa.

Esta pode ser uma das poucas linhas no discurso de Putin destinadas tanto às capitais ocidentais quanto ao público russo. Líderes europeus sabem que sanções econômicas severas prejudicarão suas economias tanto quanto a da Rússia. Putin pode estar esperando persuadi-los de que esse sacrifício será inútil. 

Veículos militares da Rússia são preparados em uma plataforma em Rostov, a cerca de 50 km da fronteira com Donetsk, em 23 de fevereiro Foto: STRINGER / AFP

Uma névoa de guerra proposital

Agora, quase todos os dias eles estão bombardeando povoamentos. Eles concentraram grandes tropas. Eles estão usando blindados e outros maquinários pesados. Eles estão torturando pessoas — crianças, mulheres, idosos. Isso não para. Não vemos o fim disso.

O discurso de Putin culmina numa descrição inteiramente falsa de um ataque militar da Ucrânia contra o leste controlado por separatistas. Na realidade, anteriormente ao seu discurso, forças apoiadas pela Rússia bombardearam território ao longo da linha de controle que separa forças ucranianas e separatistas.

Isso é provavelmente destinado a enlamear o entendimento público na Rússia. Se ambos os lados acusam o outro de agressões injustificadas, quem pode afirmar, afinal, que lado está falando a verdade? 

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Mas o retrato descrito por Putin pode ter intenção de justificar uma ação ainda maior do que a ordem que ele emitiu após seu discurso para uma “operação de paz” da Rússia nos territórios ucranianos controlados por separatistas.

Governos ocidentais afirmaram repetidamente que possuem dados de inteligência mostrando que Putin planeja encenar um suposto ataque contra as forças apoiadas pela Rússia para justificar uma invasão maior, talvez até um cerco a Kiev. Muitas das forças russas estão concentradas nas fronteiras norte e sul da Ucrânia, longe do leste separatista. 

O quadro que Putin descreve no fim de seu discurso, de uma vasta campanha ucraniana de terror auxiliada por hostis governos ocidentais dedicada a atacar a Rússia, parece deixar aberta essa opção. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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