PUBLICIDADE

Para aqueles que duelam por região entre Armênia e Azerbaijão, viver juntos é 'impossível'

Armênios e azeris coexistiram nos dias soviéticos em Nagorno-Karabakh. Mas o conflito quanto ao território disputado explodiu no fim dos anos 1980, deixando feridas inflamadas que irromperam novamente

Por Anton Troianovski
Atualização:

SHGHARJIK, ARMÊNIA - O memorial de concreto para 30 soldados azeris - esburacado, manchado e rachado - surge da encosta íngreme da montanha ao lado dos restos em ruínas de dois carros velhos.

Eles morreram lutando pela União Soviética na Segunda Guerra Mundial, mas chegou a hora, diz o atual chefe do vilarejo, de o monumento aos soldados sair de cena.

"Agora também temos nossos heróis", disse o chefe do vilarejo, Shahen Babayants, que é armênio.

Civis se refugiam em abrigo contra bombas em Stepanakert, capital deNagorno-Karabakh. Foto: AP Photo/Dmitri Lovetsky - 06/10/2020

PUBLICIDADE

Armênios e azeris viveram lado a lado nos dias soviéticos, até que o conflito pelo disputado território montanhoso chamado Nagorno-Karabakh explodiu no fim da década de 1980 em tumultos, expulsões e uma guerra de anos. A violência deixou feridas pessoais inflamadas por décadas, tão teimosas quanto as ruínas de pedras cinzas e beges dos vilarejos do Azerbaijão ainda espalhadas na zona rural armênia.

Nas últimas duas semanas, essas cicatrizes não curadas explodiram em uma conflagração moderna de guerra de trincheiras, ataques de drones e bombardeios de artilharia. Mais de 500 soldados armênios morreram, junto com dezenas de civis e um número desconhecido de azeris. Um cessar-fogo negociado em Moscou no fim de semana não foi cumprido, e o presidente Ilham Aliyev, do Azerbaijão, ameaçou uma intensificação de sua ofensiva.

A nova guerra por Nagorno-Karabakh, na qual o Azerbaijão insiste que está pronto para lutar para recapturar o pedaço de terra conquistado pela Armênia na década de 1990, está emergindo como o conflito mais mortal deste século na região ao sul do Cáucaso que separa a Europa da Ásia, entre o Mar Negro e o Mar Cáspio.

Bomba não detonada vira parte da paisagem em rua de Stepanakert. Foto: ARIS MESSINIS / AFP

O conflito tem o potencial de se transformar em uma crise ainda maior com consequências imprevisíveis. Já está atraindo a Turquia, aliada do Azerbaijão, que é membro da OTAN; a Rússia, que tem um tratado de defesa mútua com a Armênia; e até o Irã, que faz fronteira com a região ao sul.

Publicidade

Para a população da região, a guerra é uma continuação de conflitos intermináveis tanto no território quanto na história, com raízes que remontam a mais de um século. Os dias em que a União Soviética controlava esses conflitos, e os azeris e os armênios em sua maioria viviam juntos em paz, parecem um mundo irrevogavelmente perdido.

“Cada um quer dizer que é o dono desta terra”, disse Babayants, ele mesmo é um refugiado que deixou o Azerbaijão em 1989. “Viver juntos é, simplesmente, impossível”.

Ele se estabeleceu na Armênia, logo depois da fronteira, em um vilarejo que recentemente tem sido o lar de azeris. Poucos anos depois de sua chegada, o vilarejo foi incendiado por tropas do Azerbaijão. O cemitério azeri, entre tantos lugares, foi atingido.

Criança corre em frente a um prédio destruído em 1993, durante a guerra, na cidade de Shusha, na região do Nagorno Karabakh. Foto de acervo tirada em 29 de outubro de 2009. Foto: AZERBAIJAN-ARMENIA/CONFLICT REUTERS/David Mdzinarishvili/Files

Além dessa fronteira, uma extensão de montanhas verde-acinzentadas, é um território que é internacionalmente reconhecido como parte do Azerbaijão, mas tem sido efetivamente controlado pela Armênia desde a guerra dos anos 1990. Isso inclui o enclave de maioria armênia de Nagorno-Karabakh e as terras que o rodeiam e o ligam à Armênia.

PUBLICIDADE

Cerca de 500.000 azeris foram expulsos, frequentemente de modo violento, daquele território, e mais de 200.000 foram forçados a sair da Armênia propriamente dita.

Por décadas, mediadores internacionais vêm procurando uma maneira de devolver o território ao Azerbaijão, preservando a segurança dos armênios em Nagorno-Karabakh. Para Babayants, a lição da história é que devolver esses territórios está fora de questão. Para o Azerbaijão, a perda deles tem sido uma tragédia nacional.

Os azeris que perderam suas casas na Armênia e no território controlado pela Armênia representam cerca de 10% da população do país. Seu desejo de deixar moradias desconfortáveis e voltar à vida no vilarejo tem sido uma força política potente no Azerbaijão e ajuda a explicar o apoio doméstico à intensificação do conflito por Aliyev.

Publicidade

Tatyana Pashayeva, de 56 anos, chora em abrigo subterrâneo na cidade de Terter, no Azerbaijão. Foto: Bulent Kilic / AFP

“Eles continuaram pressionando as autoridades para que devolvessem suas casas”, disse Avaz Hasanov, um defensor da paz do Azerbaijão que manteve conversas frequentes com os armênios durante os esforços da sociedade civil para mediar o conflito. “Era impossível deixar esse fato de lado.”

No Azerbaijão, muitos culpam a intransigência armênia sob o governo do primeiro-ministro Nikol Pashinyan, que assumiu o poder após uma revolução em 2018, por pressionar Aliyev para tentar resolver o conflito militarmente. Embora o Azerbaijão tenha perdido a guerra que terminou em 1994, sua crescente riqueza energética nos últimos anos tem permitido a Aliyev fortalecer seu exército com drones armados e outros armamentos sofisticados de Israel, Rússia e Turquia que, segundo analistas, excedem as capacidades da Armênia.

Hasanov disse que o Azerbaijão vinha suportando a situação há 26 anos. “Agora, nós e eles acabamos neste buraco e vai ser muito difícil sair dele”, acrescentou.

Tanto no Azerbaijão quanto na Armênia, as visões do outro como inimigo tem sido reforçadas à medida que uma geração atingiu a maioridade sem nenhuma lembrança de viver uns com os outros em termos amigáveis. O Ministério da Defesa do Azerbaijão postou imagens de drones no Twitter, com música dramática, mostrando o que parecem ser os últimos momentos da vida dos soldados armênios enquanto tentam fugir dos mísseis. O Ministério da Defesa da Armênia, que possui tecnologia de drones menos sofisticada, publicou um vídeo gráfico de soldados azeris mortos.

Cidades do Nagorno-Karabakh foram duramente bombardeadas durante os dias de conflito. Foto: AFP PHOTO / NKR Infocenter / Davit Ghahramanyan

“Não consigo imaginar dois povos no mundo que se odeiem tanto quanto armênios e azeris”, disse Serob Smbatyan, de 30 anos, cardiologista da cidade de Kapan, no sul da Armênia, que já serviu no exército em Nagorno-Karabakh.

Thomas de Waal, um especialista britânico na região que escreveu um livro sobre Nagorno-Karabakh, "Black Garden" (Jardim Negro, em tradução livre), disse temer uma nova intensificação do país agora que mais de duas semanas de guerra enfraqueceram as defesas da Armênia e desgastaram suas frágeis linhas de suprimento . Na pior das hipóteses, disse ele, o Azerbaijão poderia tentar capturar todo o território de Nagorno-Karabakh - não apenas os escassamente povoados ao redor que antes abrigavam os azeris e agora são controlados pela Armênia.

“Certamente parece que a coexistência pacífica na era soviética era um pouco ilusória”, disse de Waal. “Eles viviam juntos - mas também em mundos paralelos, no que dizia respeito a sua compreensão da história e do que pertencia a quem.” / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.