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'Para Francisco, evangélicos não são ameaça'

Biógrafa diz que foco do papa não são os protestantes, mas quem se distanciou da vida cristã

Por Ocimara Balmant
Atualização:

Protestante, filha de pastor, a argentina Evangelina Himitian é autora da primeira biografia do papa: A vida de Francisco: o papa do povo (ed. Objetiva, 256 páginas, R$ 24,90). A obra que chegou às livrarias menos de dois meses após o conclave traz detalhes da atuação do "padre Bergoglio", modo como a autora se refere ao homem que, ademais dos já conhecidos hábitos austeros de vida, levantou a voz contra a corrupção e organizou o movimento ecumênico que, na crise econômica de 2001, colocou os joelhos no chão para orar pelo país.

Os pastores estão entre seus melhores amigos. Tanto que, enquanto arcebispo de Buenos Aires, conta Evangelina, ele enviava previamente suas homilias para que eles lessem e opinassem.

O livro já estava previsto ou nasceu após a eleição?

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Evangelina Himitian - Tudo após. Eu tinha um material prévio porque, em distintos momentos, como jornalista do La Nación (um dos principais jornais argentinos), tive oportunidade de entrevistá-lo e também participei nos encontros ecumênicos, em que padre Bergoglio participou muito ativamente.

Além da rotina de Bergoglio antes do conclave, seu texto traz detalhes já do dia a dia de papa, como os telefonemas para amigos. Você o entrevistou? 

Evangelina Himitian - Não. Mesmo porque os dias posteriores à eleição foram muito intensos. Mas tive acesso a muitos colaboradores e pessoas próximas a ele. Enquanto eu preparava o livro, desejei ser uma dessas pessoas a quem ele telefonou, mas não fui. E foi tudo muito rápido. Entreguei o livro 15 dias após a eleição.

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Que rápido!

Evangelina Himitian -Sim. Até o papa ficou surpreso. Quando há algumas semanas ele me recebeu em uma audiência privada no Vaticano, para que eu lhe entregasse um exemplar do livro, ele brincou que fiz um trabalho digno do serviço de inteligência.

E ele já leu? O que achou?

Evangelina Himitian - Quando nos vimos, ele me disse que lhe haviam falado bem do livro e que ele estava com muita vontade de ler. Disse que encontraria um tempo e que me daria um retorno em alguns dias... 

Você conta no livro que Bergoglio enviava suas homilia para os amigos, entre eles muitos pastores. Agora como papa ele continua fazendo isso?

Evangelina Himitian - Não sei de ninguém que tenha recebido... Sei que no Vaticano tudo é muito mais cuidadoso, com um protocolo muito mais fechado... 

Sua amizade com ele se deve também à proximidade dele com seu pai, pastor evangélico. Na Argentina, o ecumenismo ganhou força com Francisco?

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Evangelina Himitian - Em Buenos Aires o ecumenismo tem avançado bem. Claro que há alguns setores, tanto católicos como protestante, que ainda são bem resistentes, mas os grupos principais se uniram. Os encontros ecumênicos cresceram ano a ano, com o aprofundamento das relações e maior quantidade de pessoas. 

E quando isso começou?

Evangelina Himitian - Os vínculos mais fortes começaram a partir da crise de 2001, que fez mais palpável a necessidade de as pessoas se unirem para buscar a Deus de uma forma que construísse diálogo.

O papa trata os evangélicos como irmãos, mas muito se diz que o avanço do protestantismo é a principal ameaça ao catolicismo na América Latina. Como acha que ele vai lidar com isso? 

Evangelina Himitian - Eu não creio que, para este papa, o crescimento da igreja evangélica seja uma ameaça para a Igreja Católica. Se entendo o pensamento de Francisco, ele está mais preocupado com o distanciamento das pessoas da vida cristã. Talvez outros muitos católicos vejam os evangélicos como inimigos, mas ele não...

No Brasil, cada vez que os dados censitários mostram a diminuição dos católicos ante o aumento dos evangélicos, diz-se que a Igreja precisa fazer algo para os recuperar...

Evangelina Himitian -Obviamente, Francisco não fará proselitismo religioso em favor dos evangélicos, mas ele não estará preocupado em reaver esses católicos. Para ele, o pior inimigo da Igreja Católica é o afastamento das pessoas de Cristo. 

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Vê-se no discurso e nas ações do papa, a importância que ele dá para essa proximidade com as pessoas, mas ele é um só. Como fazer com que todo o clero se empenhe nessa missão? 

Evangelina Himitian - É um desafio. Em Buenos Aires, logo após a eleição de Francisco, houve uma explosão de fé. Mas, quando esses fiéis chegam à Igreja, não é Bergoglio que encontram, mas outros perfis de lideres. Se a Igreja quer realmente uma espécie de avivamento, é preciso repensar sua estrutura verticalista, fazer um sistema mais aberto e próximo às pessoas. Esta é a esperança que muitos têm em Francisco, o que provocou uma onda de popularidade e até de fanatismo em alguns casos. Mas, claro, há um interesse para que não seja apenas uma mudança de estilo, mas também uma nova forma de governar o Vaticano. 

E quando começaremos a ver esta mudança de gestão?

Evangelina Himitian - Em pouco tempo, eu acredito. As principais mudanças devem ser a reforma da cúria romana e da estrutura de poder dos últimos anos – em que não era o papa quem governava realmente, mas outras instâncias – e a reestruturação do Banco do Vaticano, que é uma das grandes demandas que a sociedade põe à Igreja. Será que a igreja precisa de um banco? O próprio Francisco disse que há uma máfia por lá.

Por declarações como essas, diz-se que Bergoglio não pensa duas vezes em falar o que pensa. É isso mesmo?

Evangelina Himitian - Ele fala o que pensa, mas é muito estratégico no que diz e no que se cala. Não é verborrágico. É consciente do que provoca suas palavras. Agora é mais difícil porque perdeu o termômetro da rua, da gente comum que tinha relação com ele e lhe dava a dimensão do seu discurso. Minha opinião é que agora deve estar mais difícil, para ele, dimensionar o fenômeno Francisco em nível mundial.

O que se pode esperar de mudanças em dogmas e doutrinas?

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Evangelina Himitian - Do que se conhece de Bergoglio, pode haver uma maior abertura em relação ao celibato. Particularmente em relação aos padres, sua opinião é a de que não seria um problema se eles fossem casados. Quanto ao batismo de crianças filhas de casais não casados, ele já pedia aos sacerdotes que não pusessem entraves. A comunhão dos divorciados é outro ponto que deve avançar. Francisco não vai aprovar o divórcio, mas deve propor uma forma de a Igreja receber e incluir essas pessoas. Agora, quanto ao casamento gay e ao aborto, não se deve esperar mudanças nesse sentido. Sua postura é muito conservadora, ele entende que isso contraria os ensinamentos bíblicos. 

O papa valoriza a religiosidade popular, como procissões, festas de padroeiro etc. Você acha que isso pode ser uma forma de aproximar os fiéis latinos, afeitos a esse tipo de manifestação? 

Evangelina Himitian - Quando ele fala em religiosidade popular, o que ele valoriza é o potencial de fé que há nessas expressões de gente que acende uma vela, usa uma medalha. Ele valoriza a simplicidade de quem se acerca de Deus nesses atos de religiosidade popular. 

É uma forma própria de se acercar do pobre?

Evangelina Himitian - Historicamente, a Igreja tem duas posições no entendimento do pobre: o assistencialismo e a Teologia da Libertação. A primeira consiste naquela ajuda pontual e, a segunda, vê o pobre a partir da lógica marxista. Muitos católicos se engajaram nessa lógica na América Latina e isso afastou muita gente da fé e não tirou as pessoas de suas condições de pobre. Por isso, Bergoglio acha que não podemos entender o pobre de nossa própria perspectiva ou a partir do marxismo. Temos de entender o pobre desde a perspectiva do próprio pobre e, por isso, a revalorização da religiosidade popular é um caminho. Valorizar os ícones e os elementos de fé dessa população.

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