Parlamento britânico debate projeto de lei que amplia conceito de bem-estar animal

Projeto de lei que está sendo debatido tem um escopo sem precedentes porque visa proteger a vida selvagem, assim como animais domesticados e de companhia, como vacas e galinhas, cachorros e gatos

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Por William Booth
Atualização:

LONDRES - Como uma lagosta se sente quando é jogada em uma panela de água fervente? O Parlamento Britânico quer saber. Um polvo fica triste às vezes? Uma lula aprende suas lições? A abelha sente alegria? A minhoca sente ansiedade? Os representantes na Câmara dos Lordes estão atualmente debatendo o tema. Essas questões surgem porque o primeiro-ministro Boris Johnson está tentando cumprir sua promessa de campanha de assegurar por lei a ideia de que os animais são "seres sencientes", o que significa que o governo seria obrigado não apenas a proteger o bem-estar físico das criaturas, mas também a levar em consideração seus sentimentos - de prazer, dor e muito mais. O debate no Parlamento ocorreu em junho na Câmara dos Lordes, mas ainda não há data prevista para que ele seja levado a votação.  O projeto de lei do bem-estar animal (senciência) é um texto legislativo potencialmente abrangente que pode exigir que todos os setores do governo - não apenas o Ministério da Agricultura - considerem a senciência animal ao formular políticas e redigir regulamentos.

Pesca de lagostas no Oceano Atlântico Foto: AP Photo/Robert F. Bukaty, File

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O projeto de lei que está sendo debatido tem um escopo sem precedentes porque visa proteger a vida selvagem, assim como animais domesticados e de companhia, como vacas e galinhas, cachorros e gatos. O que isso significa? Que o governo poderia em breve ser responsável não apenas pelo bem-estar de uma espécie em nível populacional - o ameaçado papagaio-do-mar, por exemplo - mas também pelos possíveis efeitos da política sobre cada papagaio-do-mar.

As implicações podem ser morais e profundas, esperam os - ou complicadas e burocráticas, dizem os críticos, com alguns vendo um jogo de forças por parte ativistas veganos e radicais dos direitos dos animais. Novas questões talvez sejam levantadas: aqueles conhecidos barcos de turismo cheios de observadores de pássaros se aproximam demais dos penhascos onde as aves se reproduzem na Ilha Skomer? Um papagaio-do-mar particularmente fotogênico parece perturbado por eles? Uma ave selvagem rara tem o direito de ser deixada em paz? O projeto de lei parece ir além das proteções da União Europeia, antes vistas como as mais abrangentes da Terra, e muito, muito além das leis relativamente permissivas dos Estados Unidos. Na Câmara dos Lordes, os representantes se perguntaram em voz alta se não estavam tocando em questões de alma. "A situação como um todo mudou", disse Donald Broom, autoridade em bem-estar animal da Universidade Cambridge. “Eu penso no novo conceito como 'uma biologia'. Que os animais humanos e outros animais são extraordinariamente semelhantes ", disse ele, "e que os animais sencientes são indivíduos que sentem dor e sofrimento, e todos os tipos de outras coisas, e isso deve ser levado em consideração ". Broom afirmou que "não era contra comer ou explorar animais, mas devemos pensar neles como indivíduos". Ele disse que o estudo científico de cognição, consciência e senciência animal tem avançado rapidamente nos últimos anos e que habilidades outrora consideradas exclusivas dos humanos também têm sido descobertas em animais não humanos, entre elas o uso de ferramentas, linguagem, senso de tempo e futuro, engano, empatia e altruísmo. Um destaque da legislação proposta é a criação de um grupo de especialistas independente - o Comitê de Senciência Animal - que examinará detalhadamente as decisões do governo para garantir que os ministros tenham prestado "todo devido respeito" ao bem-estar dos animais como seres sencientes, ou explicar por que não o fizeram. Quais animais, você pergunta? Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros, como escreveu George Orwell? Parece que sim. Talvez para acelerar sua aprovação, o projeto de lei apresentado se aplica apenas aos vertebrados - animais com coluna vertebral - ou seja, mamíferos, aves, répteis, anfíbios e peixes, tanto selvagens como domésticos. Isso pode muito bem estender a proteção aos animais para além do que nós, humanos, já fizemos antes. Mas os ativistas estão pressionando para que o projeto de lei inclua alguns invertebrados e, com base no debate inicial na Câmara dos Lordes, muitos legisladores concordam com isso.

O Lobby das Lagostas

Você quer saber se há um lobby para lagostas? Sim, existe. E seu nome é Crustacean Compassion (Compaixão dos Crustáceos). "Fiquei chocada com o tratamento dado a animais como lagostas, caranguejos e lulas, com a maneira como eles têm sido armazenados e muitas vezes mortos", disse Janet Fookes, baronesa do partido Conservador na Câmara dos Lordes. Janet contou à Câmara a respeito de "um exemplo horrível de um supermercado embrulhando um caranguejo vivo em plástico descartável - uma abominação dupla, pelo que me consta - e as lagostas ainda são mergulhadas vivas em água fervente". Janet disse que queria ver "máquinas perfeitamente boas e impressionantes" usadas antes que os caranguejos e os camarões fossem para água fervente, "que se pudesse fazer esse trabalho de maneira humana". Uma colega e integrante do partido Trabalhista, Barbara Young, a baronesa de Old Scone, defendeu a inclusão de certos invertebrados. "Já existem evidências suficientes de senciência entre cefalópodes e crustáceos decápodes", disse Barbara, incentivando os colegas a assistirem "o premiado documentário 'Professor Polvo', que explora a relação um tanto bizarra e estranha, mas mesmo assim afetiva, entre um homem e um polvo." O filme ganhou um Oscar na categoria de Melhor Documentário este ano. Quando o conservador lorde Richard Benyon apresentou o projeto de lei em junho, ele começou observando a reputação global da Grã-Bretanha como uma nação de pessoas que amam os animais. A primeira lei nacional de proteção animal do país, a Cruel Treatment of Cattle Act (Lei do Tratamento Cruel do Gado), foi promulgada em 1822, quando os londrinos cansaram de ver vacas extremamente magras serem conduzidas para o mercado pela cidade. Ela foi seguida por uma legislação para melhorar as condições dos matadouros em 1875; depois, veio a Lei de Proteção dos Animais em 1911; e um sistema pioneiro mundialmente na regulamentação dos experimentos científicos com animais em 1986. A ideia de senciência animal foi incorporada aos princípios da legislação da União Europeia em 2009 no Tratado de Lisboa. Mas com a saída do Reino Unido do bloco, o governo de Boris Johnson foi pressionado pelos eleitores a estabelecer proteções semelhantes - ou até maiores. Mike Radford, autoridade em leis de bem-estar animal da Universidade de Aberdeen, na Escócia, disse que o projeto de lei de senciência pode ser uma iniciativa ousada, mas que sua linguagem, suas definições e seus conceitos vagos são problemáticos. "Politicamente, é uma bagunça e tanto", disse ele, acrescentando que o projeto não define de verdade o que é"animal" ou "senciência". Radford, entretanto, achou que era "muito, muito provável" que a legislação fosse modificada para incluir polvos, caranguejos e outros “parentes”, dizendo que a oposição à fervura enquanto os seres ainda estão vivos tornou-se a tendência dominante. "Colocar lagostas vivas em panelas [com água fervendo] para que elas fiquem vermelhas é um grande problema", disse ele. Para medir o poder do lobby do bem-estar animal, observe que atualmente há mais de 1,1 milhão de associados à Sociedade Real para a Proteção das Aves da Grã-Bretanha, um número maior do que o de políticos nos cinco principais partidos políticos da Grã-Bretanha juntos. A admirada sociedade protetora dos animais de estimação britânicos, a Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals, atualmente está apoiando a inclusão de caranguejos e chocos. "Não faz muito tempo que havia uma opinião amplamente difundida de que peixes não sentem dor, mas pesquisas inovadoras descobriram que eles sentem", observou a sociedade. Jonathan Birch, líder do projeto Foundations of Animal Sentience da London School of Economics, que está estudando o tema para o Parlamento, disse que um conjunto crescente de provas aponta para o sentimento e a emoção em todos os tipos de invertebrados. Embora ele se preocupe com a possibilidade de que o novo comitê de fiscalização talvez não tenha tanto poder e que pouca coisa mude, está esperançoso. "É um bom ponto de partida", disse ele, "e é melhor do que nada." O projeto de lei da senciência teve sua segunda leitura na Câmara dos Lordes. Em seguida, ele vai para o comitê, onde ocorre a discussão linha por linha de emendas, ele talvez seja reeditado e mais alterações sejam debatidas e, em algum momento, pode ser enviado à Câmara dos Comuns, onde ocorre uma análise e um debate semelhantes, porém mais detalhados, com mais trabalho das comissões, mudanças e votos. É um longo caminho - e os céticos estão no meio dele. No debate inicial na Câmara dos Lordes, Daniel Moylan, barão, expressou seus temores: "A consequência lógica é que somos conduzidos na direção do veganismo e do consumo apenas de plantas que não sentem nada." Não apenas isso. O projeto, disse ele, talvez dê ao governo "o poder irrestrito de declarar ... que uma minhoca é um ser senciente. Este é um poder maior do que o dado por Deus a Adão no Jardim do Éden, que, pelo que me lembro, estava restrito ao poder de nomear animais". Matt Ridley, visconde e escritor famoso de ciências, observou: "Os animais sencientes que me preocupam em relação ao projeto de lei são as criaturas vivas, de raciocínio lógico e que se movimentam voluntariamente, chamadas burocratas. O projeto de lei faz pouco ou nada para mudar a maneira como tratamos os animais, mas cria uma excelente oportunidade para o Homo burocraticus fazer o que sabe melhor: construir um ninho e angariar muitos operários. "TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

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