'Partido vencedor na Tunísia nega divisão religião-Estado'

Eleito na votação do dia 23, Ennahda é 'contraditório' sobre papel do Islã e está longe do modelo turco, diz analista

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Por Lourival Sant'Anna
Atualização:

O partido islâmico Ennahda (Renascimento) venceu as primeiras eleições democráticas da Tunísia, no dia 23, mas sua votação não foi tão grande quanto se supõe. Isso por causa do sistema proporcional e porque metade dos tunisianos com direito a votar nem sequer se inscreveu - um dado que o comparecimento de 90% não revela. O Ennahda está longe de ser tão moderado quanto o Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP) da Turquia, com o qual tem sido comparado. Ele não aceita a separação entre religião e Estado e suas declarações sobre o papel do Islã são contraditórias. A análise é de Hamadi Redissi, professor de Ciência Política da Universidade de Túnis e presidente do Observatório Tunisiano para uma Transição Democrática, em entrevista ao Estado. Como se explica a vitória do Partido Ennahda?A vitória foi, com razão, celebrada, mas, do ponto de vista técnico, o sucesso não foi tão grande: 7,8 milhões de pessoas tinham idade para votar, mas apenas 4 milhões se inscreveram e 3,7 milhões compareceram. O Ennahda teve 1,5 milhão de votos, o que representa 40% do total, enquanto que 1,3 milhão foram perdidos e não atribuídos a nenhuma das listas por causa das regras eleitorais. A representação proporcional prejudica as listas menores. Mas o sucesso é notável e surpreendente o bastante para ser levado a sério. Em primeiro lugar, as pessoas votaram em um movimento histórico que lutou contra a ditadura durante décadas e foi duramente reprimido. Segundo, as pessoas votaram por razões religiosas, o que lhes deu vantagem quando comparados aos esquerdistas e secularistas que também resistiram contra (o ex-ditador Zine al-Abidine) Ben Ali, mas no fim foram punidos pela votação. A combinação de resistência e religião os torna mais fortes nos bairros populares e mesmo entre a classe média. Em terceiro lugar, as pessoas votaram em uma mudança efetiva e em uma ruptura com o velho sistema. Ele é tão odiado que qualquer acordo com seus representantes ou aliados tem sido considerado tentativa de restaurá-lo com nova embalagem. O Ennahda fez muitas concessões para ir além de suas raízes, conquistar a classe média alta e até ex-adeptos do velho regime. Quarto, as pessoas confiaram neles, acharam que são capazes de governar e quiseram lhes dar uma chance de pôr em prática suas enormes promessas de resolver os problemas econômicos, criar empregos e erradicar a pobreza. Resta saber até que ponto o Ennahda será capaz de atender demandas tão grandes.Qual será o grau de interferência da religião no novo governo?Diferentemente do turco AKP, o Ennahda recusa vigorosamente a separação entre Estado e religião e entre religião e política. Mais que isso, eles fizeram campanha para manter o Artigo 1.º de nossa antiga Constituição, de 1959, que estipula que o Islã é a religião do Estado. Os secularistas aceitam esse artigo, mas rejeitam usar a religião para objetivos políticos. Portanto, o Estado continuará a administrar os cultos e interferir nos assuntos religiosos. O novo governo manterá, e provavelmente reforçará, esse papel clássico.Por agora, as pessoas continuarão podendo beber álcool, andar nas ruas sem véu e usar biquínis nas praias da Tunísia?O Ennahda fez declarações contraditórias, tanto antes quanto depois da eleição. Seus líderes declaram respeitar as liberdades individuais, mas fizeram campanha contra qualquer tentativa de criticar a religião publicamente. Eles fingem que não mudarão à força o estilo de vida tunisiano e insistem que estão comprometidos em respeitar o Código sobre o Status das Mulheres, de 1956, que proíbe a poligamia. Mas, ao mesmo tempo, o Ennahda está planejando incentivar hotéis livres de álcool e bancos que não cobram juros. Eles adorariam sobretaxar bebidas e limitá-las a algumas áreas. Desejam 'moralizar' o estilo de vida tunisiano e provavelmente criar aos poucos uma sociedade alternativa convivendo com a atual. Mas não avançarão por causa da forte resistência a seus planos. Os tunisianos votaram em um movimento islâmico, não em uma plataforma islâmica. Essa será uma das grandes questões no próximo ano. A partir do que observou nessa eleição, o sr. acha que a democracia criará raízes na Tunísia?Com certeza. Os tunisianos ficaram muito orgulhosos de votar livremente em uma eleição honesta e transparente. Desde 14 de janeiro (início da rebelião), foram criados milhares de movimentos e associações fortemente comprometidos com a defesa da democracia. As eleições foram supervisionadas por um órgão independente formado por militantes e voluntários. Os islâmicos representam um componente forte da vida política, nada mais. Entretanto, o processo em curso é complicado. Até que ponto os partidos políticos permanecerão coesos e o governo será capaz de superar os problemas econômicos são os verdadeiros desafios no curto prazo.

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