'Passaportes de vacinas' emergem como próxima divisão causada pelo coronavírus

Empresas e universidades querem maneiras rápidas e simples de averiguar se estudantes e clientes estão vacinados, mas políticos conservadores tornaram os ‘passaportes de vacinação’ uma questão cultural

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Por Sheryl Gay Stolberg e Adam Liptak
Atualização:

WASHINGTON — Convencida de que um comprovante digital de vacinação contra o coronavírus trará de volta a segurança às viagens internacionais, a companhia aérea Cathay Pacific pediu a pilotos e tripulantes que experimentem um novo aplicativo de smartphones que informa se eles foram ou não imunizados, em um voo recente entre Hong Kong e Los Angeles.

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Nova York lançou seu “Excelsior Pass”, anunciado pelo governo do Estado como “uma maneira grátis, rápida e segura de comprovar a vacinação contra a covid-19”, a ser apresentado em eventos esportivos e de entretenimento que exijam prova da situação imunológica dos frequentadores.

E o Walmart, o maior gerador de empregos privados dos Estados Unidos, está oferecendo aplicativos de verificação eletrônica de imunização às pessoas que são vacinadas em suas lojas, para “possibilitar o acesso à sua situação imunológica quando necessário”, afirma a empresa.

Em todo os EUA, negócios, escolas e políticos estão considerando os “passaportes de vacinação” — comprovantes digitais de imunização contra o coronavírus — um caminho para reavivar a economia Foto: Ethan Miller/Getty Images/AFP

Em todo os EUA, negócios, escolas e políticos estão considerando os “passaportes de vacinação” — comprovantes digitais de imunização contra o coronavírus — um caminho para reavivar a economia e permitir que os americanos voltem a trabalhar e se divertir. Os comércios temem, especialmente, que um grande número de pessoas evite frequentá-los, a não ser que haja a garantia de que os demais clientes estejam vacinados.

Mas a ideia está levantando questões legais e éticas. Se vacinar-se é um ato voluntário, as empresas podem exigir que funcionários ou clientes forneçam prova — digital ou de outro tipo — de que foram vacinados?

Escolas podem exigir que estudantes provem que foram inoculados com uma profilaxia que, oficialmente, ainda é experimental, da mesma maneira que exigem vacinação contra doenças como sarampo e pólio, cujos imunizantes foram aprovados há tempos? E, finalmente, os governos podem obrigar as pessoas a se vacinar — ou se contrapor a entidades comerciais ou educacionais que exijam comprovação de imunização?

Especialistas em direito afirmam que a resposta para todas essas questões geralmente é sim, apesar de que, em uma sociedade tão dividida, os políticos já estejam se preparando para a briga. Entidades públicas, como conselhos escolares e o Exército, podem exigir vacinações para adesão, prestação de serviços e viagens — práticas que decorrem de uma ordem de 1905 da Suprema Corte determinando que os Estados devem obrigar os moradores a se vacinar contra varíola, sob pena de multa em caso de não cumprimento.

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“Uma comunidade tem direito de se proteger contra uma epidemia de uma doença que ameaça a vida de seus cidadãos”, escreveu o juiz John Marshal Harlan no caso Jacobson contra o Estado de Massachusetts.

Empresas privadas, além disso, têm direito de se recusar a empregar ou fazer negócios com quem quer que seja, salvo poucas excessões — que não levam em contavacinações. E os Estados provavelmente podem anular esse direito aprovando uma lei que proíba discriminação com base em imunizações.

Mas enquanto o país luta para sair da pior crise de saúde pública em um século, a chegada dos aplicativos de verificação digital de vacinação — uma versão moderna do “cartão amarelo” da Organização Mundial de Saúde, o comprovante internacional de imunização contra febre amarela — tem gerado um intenso debate a respeito da legalidade da exigência da comprovação da inoculação.

Na terça-feira, o governador Greg Abbott, do Texas, virou o governador republicano a emitir mais recentemente uma ordem executiva impedindo agências públicas estaduais e entidades privadas que recebem recursos do Estado de exigir prova de vacinação. A Organização Mundial de Saúde, citando preocupações relativas à equidade, também afirmou na terça-feira que não apoia a comprovação obrigatória de vacinação em viagens internacionais.

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Outras entidades estão avançando com a ideia. Universidades como Rutgers, Brown e Cornell já afirmaram que exigirão provas de imunização dos estudantes no início do próximo ciclo acadêmico, no terceiro trimestre. O Miami Heat se tornou esta semana o primeiro time da NBA a inaugurar seções “somente para vacinados” em sua arena.

E apesar de o comércio ainda não ter anunciado restrições claras para clientes não vacinados, alguns Estados e firmas de tecnologia estão se preparando. Pelo menos 17 empresas ou entidades sem fins lucrativos estão desenvolvendo sites ou aplicativos que podem ser usados em eventos esportivos, restaurantes e outros negócios para manter clientes e funcionários em segurança, de acordo com Joel White, diretor executivo da Health Innovation Alliance, uma ampla coalizão de empresas do setor da saúde, empresas de tecnologia, empregadores em geral e companhias de seguro.

Empresas aéreas, incluindo a JetBlue e a United Airlines, estão testando o aplicativo“CommonPass”, desenvolvido por The Commons Project, uma entidade sem fins lucrativos dedicada a desenvolver tecnologias para ajudar as pessoas a controlar suas informações pessoais. A Airlines for America, entidade de classe que representa as maiores companhias aéreas americanas, se opõe à obrigatoriedade de comprovantes de vacinação no transporte aéreo, mas é favorável a um mecanismo transparente e simples que possa ser usado pelos passageiros para comprovar a vacinação. Outros países podem exigir comprovantes de imunização, e os aplicativos também poderão ser usados como prova de testes negativos para coronavírus, o que já é exigido pelos EUA para passageiros vindos do exterior.

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“Em face à realidade, exigir prova de vacinação remete demais à política do ‘Proibido entrar sem camisa’”, afirmou Mark Tushnet, professor de direito de Harvard.

Os Centros para a Prevenção e Controle de Doenças já fornecem a todos os inoculados cartões de vacinação que podem servir como prova de imunização, e as pessoas podem portar comprovantes de testes negativos para o coronavírus. Mas os líderes da indústria comparam a comprovação digital de vacinação com aplicativos de verificação de segurança como o TSA PreCheck, cujo uso não é exigido, mas que facilita as viagens.

Em Israel, um “Green Pass” já é usado para permitir que os cidadãos frequentem restaurantes, concertos e eventos esportivos.

Apoiadores dos cartões digitais de vacinação estão pressionando o governo Biden a se envolver com a iniciativa, pelo menos estabelecendo padrões de privacidade e verificação do rigor dos registros.

A Casa Branca está claramente apreensiva.

“O governo não é nem será favorável a um sistema que exija que os americanos carreguem uma credencial”, afirmou Jen Psaki, secretária de imprensa da Casa Branca. “Não haverá nenhum banco de dados federal com informações de vacinação e nenhuma determinação federal exigindo que todos obtenham credenciais individuais de vacinação.”

Ela prometeu que o governo fornecerá orientações — muito provavelmente na forma de informativos com perguntas e respostas — a respeito de privacidade, segurança, discriminação e outras preocupações.

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Na semana passada, o diretor de tecnologia do Departamento de Saúde e Serviços Humanos organizou uma reunião virtual com funcionários estaduais e municipais de saúde, que estão perplexos com a hesitação do governo federal.

“Isso será necessário, e terá de haver algum tipo de sistema que sirva como validação”, afirmou Marcus Plescia, diretor médico da Associação de Funcionários Estaduais e Territoriais de Saúde. “Acho que todos em nossa rede estão um pouco estarrecidos em razão da maneira aparentemente distante com a qual o governo federal está tratando do assunto.”

Críticos ligados ao Partido Republicano afirmam que passaportes de vacinação suscitam a ameaça de um banco de dados centralizado de cidadãos vacinados, o que, segundo o seu ponto de vista, seria uma intrusão do governo na privacidade das pessoas.

"Um passaporte de vacinação — um sistema unificado, centralizado que garante ou proíbe acesso a atividades cotidianas como fazer compras ou jantar fora — seria um pesadelo para as liberdades civis e o direito à privacidade”, tuitou na semana passada o ex-congressista republicano Justin Amash, atualmente um libertário.

Na realidade, porém, todos os Estados já possuem um banco de dados de vacinação ou um “registro de imunização”. E sob “acordos relativos ao uso de dados”, os Estados são obrigados a compartilhar seus registroscom os Centros para a Prevenção e Controle de Doenças, apesar de a agência federal retirar a identificação dos registrados — e nem todos os Estados concordarem em fornecer os dados.

Com os aplicativos em proliferação, a Health Innovation Alliance enviou uma carta no mês passado para Jeff Zients, coordenador da Casa Branca para o combate ao coronavírus, fazendo um apelo para o governo estabelecer padrões. White, o diretor executivo da entidade, afirmou que o grupo não obteve resposta.

Ele afirmou que entende as preocupações dos republicanos, mas discorda delas.

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“Vivemos em uma sociedade livre, em que as pessoas têm liberdade de trabalhar ou não, ir a concertos ou não, frequentar restaurantes ou não”, afirmou White. “E quando lidamos com uma doença altamente infecciosa, transmitida especialmente em ambientes fechados — e capaz de matar — não é irracional que os negócios dessa sociedade livre protejam seus empregados e clientes perguntando às pessoas se elas foram vacinadas.” / Tradução de Augusto Calil