Perdão de Trump a responsáveis por massacre provoca revolta no Iraque: 'Julgamento foi só teatro'

Vítimas da empresa de segurança privada Blackwater ouviram promessas de justiça de funcionários americanos, mas presidente americano renovou a sua dor deles

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Por Falih Hassan e Jane Arraf
Atualização:

BAGDÁ, Iraque - Haider Ahmed Rabia ficou preso no trânsito em Bagdá 13 anos atrás, quando agentes da empresa de segurança americana Blackwater abriram fogo com metralhadoras e lançadores de granada, matando ou ferindo pelo menos 31 civis iraquianos. Ele ainda carrega algumas daquelas balas nas suas pernas.

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Em 2014, ele foi um dos sobreviventes e parentes de vítimas que viajaram para os Estados Unidos para testemunhar no julgamento de quatro daqueles guardas da Blackwater. Haviam lhe dito que a evidência de seu ferimento e o seu relato poderiam ajudar a trazer justiça.

"Eu fui para os Estados Unidos e vi os assassinos andando em liberdade, vestindo ternos", disse ele em uma entrevista em Bagdá na quarta-feira. "Eu disse: 'Amanhã voltarei ao meu país, mas esses assassinos enfrentarão a justiça?' Hoje eles me provaram que o julgamento foi só teatro."

Homemferido em ataque a tiros pelos seguranças da empresa Blackwater é ajudado por seus parentes em um hospital em Bagdá. Foto: REUTERS/Ceerwan Aziz - 20/09/2007

Ele falava do perdão concedido por Donald Trump em dezembro de 2020 aos quatro ex-funcionários da Blackwater, que foram condenados em 2014 no que um tribunal dos EUA determinou como um tiroteio injustificado na Praça Nisour.

Os assassinatos puseram em evidência como as empresas de segurança contratadas pelos EUA estavam agindo impunemente após a invasão do Iraque, irritando as autoridades iraquianas, cuja própria investigação também não encontrou evidências para apoiar as alegações da Blackwater de que o comboio foi atacado primeiro.

Aquela foi a primeira vez que muitos americanos começaram a conhecer o crescente papel que a Blackwater — fundada por Erik Prince, um ex-membro da força de elite SEAL e futuro aliado do presidente Trump — estava desempenhando na guerra dos EUA contra o terrorismo, ganhando bilhões de dólares em contratos enquanto a empresa acumulava acusações de abusos com poucas consequências.

Uma relação já tensa entre os Estados Unidos e o Iraque tornou-se ali mais amarga. E a reação contra os assassinatos ajudou a acelerar a retirada das forças dos EUA do Iraque em 2011, depois que líderes políticos iraquianos rejeitaram as exigências americanas de imunidade para todas as tropas americanas.

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No fim do ano passado, o Ministério das Relações Exteriores do Iraque pediu ao governo dos EUA que reavaliasse a decisão de perdoar os quatro ex-agentes da Blackwater, dizendo em um comunicado que a medida era inconsistente com o “compromisso declarado do governo dos EUA com os valores dos direitos humanos,da Justiça e do Estado de Direito.”

Ex-proprietário da empresa Blackwater, Erik Prince testemunha sobre incidentes no Iraque. Foto: REUTERS/Larry Downing/Files - 02/10/2007

A investigação foi uma das mais difíceis em termos logísticos e jurídicos na História recente do Departamento de Justiça, de acordo com ex-funcionários do departamento que trabalharam diretamente no caso.

“Nunca tínhamos feito nada parecido antes”, disse Ronald Machen, procurador dos Estados Unidos para o Distrito de Columbia na época e o oficial que supervisionou o caso. “Tivemos que enviar equipes de agentes do FBI e promotores lá para construir o caso do zero . Eles tiveram que arriscar suas vidas para coletar provas. Tivemos que persuadir os iraquianos que perderam entes queridos a virem testemunhar. E pensar que tudo foi jogado.”

Amy Jeffress, uma importante promotora de segurança nacional do Departamento de Justiça que supervisionou o caso, disse que os indultos teriam um impacto duradouro na percepção dos Estados Unidos no exterior.

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“Esses perdões enviam uma mensagem terrível ao Departamento de Justiça e aos nossos parceiros iraquianos que ajudaram neste caso tão difícil . E, claro, às vítimas.”

Os eventos na Praça Nisour em 16 de setembro de 2007 começaram com uma explosão em outro lugar: uma bomba na beira da estrada detonando a algumas centenas de metros de um complexo fortemente vigiado, onde funcionários da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional se reuniam.

Em uma cidade quase toda classificada como uma "zona vermelha" de alto risco, os agentes da Blackwater em veículos blindados pararam o tráfego na praça, um cruzamento movimentado a cerca de um quilômetro de distância da explosão, para evacuar os oficiais americanos para o antigo complexo do palácio de Saddam Hussein, onde funcionava uma base dos Estados Unidos.

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Os guardas da Blackwater disseram acreditar terem sido atacados primeiro, embora as investigações iraquianas e americanas tenham rejeitado seus relatos. Outro depoimento indicou que um tiro inicial de um guarda da Blackwater matou um motorista cujo carro continuou circulando. Isso deflagrou uma saraivada de tiros de metralhadora e granadas propelidas por foguetes dos agentes da Blackwater, que pararam apenas depois que 17 civis morreram.

Mais de 30 testemunhas iraquianas viajaram para os Estados Unidos no que foi descrito por oficiais de justiça como o maior número de cidadãos estrangeiros a testemunhar em um julgamento criminal nos EUA.

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Durante o julgamento, os sobreviventes descreveram o caos e o horror de ver membros da família mortos enquanto balas e granadas destroçavam o metal fino de carros baratos. Um pai, Mohammed Hafedh Abdulrazzaq Kinani, soluçou incontrolavelmente ao testemunhar sobre a morte de seu filho de 9 anos, Ali.

Um estudante de medicina, Ahmed Haithem Ahmed, e sua mãe, Mohassin Kathim, foram os primeiros a serem mortos, enquanto seu veículo se aproximava da praça. Ahmed levou um tiro na cabeça e a sua mãe o abraçou, gritando por ajuda. Os guardas continuaram atirando, e então um dispositivo incendiário também a matou.

O pai de Ahmed depois contou 40 buracos de bala nos destroços do veículo.

Quatro ex-guardas da Blackwater, Nicholas Slatten, Paul Slough, Evan Liberty e Dustin Heard, foram condenados por um júri federal em 2014. Embora 17 iraquianos tenham sido mortos, os homens foram acusados por 14 mortes, nas quais o FBI encontrou violação das regras para o uso de força letal.

Nicky Slatter, funcionário da Blackwaterenvolvidono massacre no Iraque, chegapara prestar depoimento acompanhado de seus advogados. Foto: REUTERS/Chris Detrick - 08/12/2008

Slatten, um ex-atirador do Exército acusado de disparar os primeiros tiros, foi condenado por homicídio e condenado à prisão perpétua, enquanto os outros três foram condenados a 30 anos de prisão por homicídio culposo e porte de arma. Em 2019, as penas de prisão desses três homens foram reduzidas aproximadamente à metade depois que uma decisão judicial anterior anulou a sentença original.

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Para alguns sobreviventes do ataque, o perdão de Trump aos funcionários da Blackwater foi um lembrete amargo do que os iraquianos sempre viram como uma falta de preocupação com a vida dos iraquianos.

Rabia, que agora tem 45 anos e trabalha como funcionário do Ministério da Eletricidade, ainda luta com danos nos nervos das pernas.

Ele estava dirigindo seu táxi na praça Nisour quando o comboio da Blackwater passou. O país havia entrado em uma guerra civil brutal desde a invasão americana, e, na capital, forças dos EUA e empresas de segurança controlavam as estradas. Alguns veículos carregavam placas com avisos nítidos: “Fique 100 metros para trás ou levará um tiro."

Rabia disse que os motoristas iraquianos estavam presos, esperando a passagem do comboio da Blackwater, quando os agentes começaram a abrir fogo. Ele foi atingido ao se arrastar para o banco do passageiro para tentar escapar.

Outro sobrevivente, Jasim Mohammad al-Nasrawi, 41, foi baleado na cabeça. Ele sobreviveu depois que Sahib Fakhir o pegou e jogou em seu próprio carro, enquanto levava seu filho ferido para o hospital. O filho de Fakhir, Mahdi Sahib, de 23 anos, morreu antes de chegar.

“Fiquei surpreso com o perdão”, disse al-Nasrawi, que dirigia pela Praça Nisour para entregar correspondência. Este é um ato de terrorismo. Onde estão os direitos humanos para Trump e os assassinos?

O nome Blackwater — a empresa fundada por Prince, irmão da secretária de Educação Betsy DeVos, efundada com a ajuda de ex-funcionários da CIA — se tornou sinônimo do que os iraquianos lembram como o massacre da Praça Nisour. Prince renomeou a empresa para Academi e vendeu-a em 2010.

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Não há nenhum vestígio visível na Praça Nisour hoje do assassinato de 2007. Jovens iraquianos tiram selfies em frente a uma estátua de bronze das águias estilizadas que dão nome à praça, enquanto o tráfego passa por outdoors iluminados anunciando eletrodomésticos e companhias telefônicas.

Saad Eskander, historiador e ex-chefe dos arquivos nacionais do Iraque, disse que para muitos iraquianos, os assassinatos na Praça Nisour são vistos simplesmente como mais um episódio sombrio, uma causa para a contínua desconfiança dos americanos.

“O Iraque testemunhou muitos eventos tristes nas últimas quatro décadas, quando a guerra Irã-Iraque estourou”, disse ele.

Ainda assim, o perdão abriu algumas feridas antigas e renovou os apelos para que o Iraque se distancie ainda mais dos Estados Unidos.

Uma das maiores milícias apoiadas pelo Irã no Iraque, a Kataib Hezbollah, exigiu que as forças dos EUA deixassem o Iraque para evitar que crimes como os assassinatos na Praça Nisour fossem cometidos novamente.

“O criminoso Trump perdoou intencionalmente um grupo de mercenários da empresa terrorista responsável pelo massacre na praça Nisour”, disse o grupo em um comunicado. “Esta medida arbitrária e injusta confirma a extensão da hostilidade americana ao povo iraquiano.”

Um proeminente advogado iraquiano, Tariq Harb, disse: “É muito doloroso ver os assassinos libertados”.

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“O fato é que eles não foram punidos porque mataram iraquianos”, disse ele. “Eles foram punidos por violar as regras americanas de uso da força.”

Ali al-Bayati, membro da comissão de direitos humanos do Iraque, disse que os perdões são uma indicação de que nenhum país leva a sério o julgamento de crimes de guerra. “Isso nos fere muito”, disse al-Bayati. “Mas os acusados são americanos, a lei é americana e o presidente é americano e não podemos fazer nada.”

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