‘Perdi um olho, mas voltarei a protestar’, diz manifestante chileno

Por dia, 9 pessoas sofrem danos graves à visão em manifestações no Chile; causa principal são balas de borracha

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Por Rodrigo Cavalheiro
Atualização:

SANTIAGO - Vendedor em uma loja de brinquedos, o chileno Jesús Emerson Llancan teve o olho esquerdo destruído por uma bala de borracha no dia 25, na marcha que reuniu mais de um milhão em Santiago. A esfera perfurou a vista e se alojou na cabeça. Após 30 minutos de cirurgia, a bolinha foi removida. Seu olho também.

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No hospital El Salvador, centro oftalmológico de referência, ele se surpreendeu ao encontrar pelo menos 50 pessoas na mesma situação. Nos 20 primeiros dias de protesto, foram em média 9 casos diários de ferimentos graves em olhos. Nos primeiros 15 dias, a média chegou a ser de 12 casos diários.

“As autoridades foram avisadas sobre o número alarmante e não tomaram providência”, denuncia o médico Enrique Morales, enquanto exibe numa planilha uma comparação com números de danos à vista de manifestantes na repressão a protestos na França, no ano passado, na Caxemira, em 2010, e entre israelenses e palestinos. “Em nenhum desses houve algo parecido ao que ocorreu no Chile”, diz.

Jesús Llancan se recupera em casa, na periferia de Santiago, de disparo que destruiu seu olho esquerdo Foto: Rodrigo Cavalheiro/Estadão

A frequência e a semelhança na forma como manifestantes como Jesús têm ficado cegos levou médicos, advogados e os próprios feridos a acusarem os “carabineros” de estar disparando diretamente na cabeça dos manifestantes. “Vi claramente quando o policial levantou a arma e mirou na minha cara, a uns 10 ou 15 metros. Depois de me acertar, disparou outra vez nas minhas costas”, diz Jesús, sentado na cozinha de sua casa de alvenaria no bairro de Puente Alto, região pobre, a uma hora de metrô e ônibus do centro de Santiago.

Jesús se encaixa no perfil dos atingidos nos olhos pela repressão: homem (85% dos casos), de 30 anos, baleado em Santiago. Faz também parte dos 61% que ficaram cegos de pelo menos um olho. E dos nove casos em que foi necessário extrair o globo ocular. Ele estava em um grupo que enfrentava a polícia com pedras perto da Praça Itália, centro dos protestos, quando foi atingido. Na mobilização, a maior até agora, o país estava havia uma semana em estado de exceção, com o Exército e tanques nas ruas. 

Ao declarar então que o país estava “em guerra”, o presidente Sebastián Piñera potencializou a revolta. “A declaração nos irritou muito. Somos um povo inteligente. O governo não se dá conta de que as pessoas estão mais cultas. A informação está mais perto de cada pessoa”, argumenta.

A manifestação em que Jesús ficou cego foi decisiva para que os militares voltassem à caserna e Piñera fizesse uma série de concessões. A primeira foi rever o aumento de 30 pesos (R$ 0,16) no metrô, o reajuste que detonou a revolta. Piñera ainda aumentou o salário mínimo de 301 mil pesos (R$ 1,6 mil) para 350 mil (R$ 1,8 mil). Recuou em uma renúncia fiscal de R$ 800 milhões por ano, principal ponto de sua reforma tributária. Prometeu rever o sistema privado de aposentadorias e, por fim, admitiu mudar a Constituição para aumentar o controle do Estado sobre as concessões. Nada adiantou.

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Bala de borracha extraída da cabeça de Jesús em cirurgia de meia hora Foto: Rodrigo Cavalheiro/Estadão

Beneficiado por todos esses recuos, Jesús analisa por que as medidas são insuficientes. “A bomba estourou neste governo, mas a situação é ruim há muito tempo. Não é só Piñera ou Michelle Bachelet, Ricardo Lagos ou Eduardo Frei. Todos esses governos não foram capazes de fazer uma mudança. Com a explosão social, da noite para o dia começaram a aparecer leis a favor da população. Porque não fizeram há 30 anos?”, questiona. Contra a vontade da mãe, ele pretende voltar aos protestos, assim que os enjoos se forem e a noção de distância retornar.

A depiladora Patricia Vidal Otarola, de 49 anos, não pôde ir ao hospital na noite do protesto que deixou o filho parcialmente cego. “Havia toque de recolher. Ninguém podia sair à noite”, lembra a mulher que, vestida com uma camiseta de metaleira, insiste em oferecer almoço a quem a visita a família.

Patricia vive com Jesús e uma filha de 11 anos. Contorce o rosto ao ser questionada sobre a vontade do filho de voltar aos atos, ainda que com a promessa de se cuidar mais. “Foi mais duro para ela que para mim. A perda da vista não afetou minha capacidade de chorar. Mas procurei fazer isso sempre escondido, para ela não ver”, diz Jesús.

Afeito a crianças, ele considera a violência justificável “em resposta à ação policial”. Garante que não participa de grupos violentos organizados. Mas gostaria de ser aceito por anarquistas - principais suspeitos de depredar mais de 40 estações de metrô no dia 18, ato que desencadeou a repressão. “Acho que eles são muito fechados”, lamenta.

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“Sou um caso entre mais de 100. Há gente morta, há gente desaparecida. Estou dentro das estatísticas. Perdi um olho, mas tive sorte. A bala poderia ter afetado o cérebro ou perfurado meu pescoço”, diz o chileno, que deixou o ensino médio com formação técnica em eletricidade, estudou um ano de publicidade e se realizou profissionalmente vendendo “barbies e carrinhos” em um shopping center. Contratado por mês, pelo salário mínimo, ele trabalhava de segunda a sábado, de 11 horas às 21 horas. Não tem ilusão de voltar a ser chamado.

Em seu quarto, um ambiente de parede azul mal-acabada e cama de casal, livros de filosofia estão misturados a brinquedos. Destacam-se miniaturas dos Simpsons numa parede e um boneco de pelúcia do Chaves jogado num canto. Jesús deixou o hospital com um olho de vidro, colocado par a manter a musculatura da região. Ele precisará comprar uma prótese que, segundo os médicos, acompanhará o movimento do olho direito e deixará sua cegueira imperceptível aos interlocutores. “Agora vou ver o que quero ver. Não vou ter o segundo olho, que nos obriga a ver tudo. Vou ver o que realmente me importa. E quero ver uma mudança.”

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