Persistência e tato para aproximar China e EUA

Em seu livro 'On China', Kissinger faz uma análise de seus esforços no decorrer de quatro décadas para aplacar as denúncias mútuas entre os dois gigantes que estavam esgotados

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Por Max Frankel
Atualização:

Henry Kissinger não foi apenas o primeiro enviado americano à China comunista; ele persistiu na facilitação das relações entre EUA e China em mais de 50 viagens no decorrer de 4 décadas, compreendendo as carreiras de 7 líderes de cada lado. Do ponto de vista diplomático, ele é o dono deste eixo; e, com o lançamento de seu livro On China ("Sobre a China", em tradução livre), Kissinger, agora perto dos 88 anos, medita sobre sua trajetória. Em boa medida, o grau de entendimento atualmente observado entre Washington e Pequim é consequência dos esforços de Kissinger, que trabalhou para ambos os lados encontrando significado em tudo, desde as piadas até os ataques de mau humor. Em cada encruzilhada, ele lutou para encontrar "conceitos estratégicos" que pudessem prevalecer sobre uma história de conflito, ressentimento mútuo e medo. Participando como conselheiro de Segurança Nacional do presidente Richard Nixon, depois como secretário de Estado de Nixon e posteriormente Gerald Ford, e desde 1977 como interlocutor extraordinário particular, Kissinger mostrou-se resolutamente comprometido com a superação do que ele considera ser um ressentimento legítimo dos chineses em relação à interferência americana nos seus assuntos internos e do desprezo sentido pelos americanos diante da brutal supressão chinesa das dissidências étnicas, religiosas e políticas.A surpresa enterrada nesta volumosa análise das relações sino-americanas está no fato de as tão celebradas viagens de Nixon e Kissinger à China em 1971-72 terem se revelado a parte fácil. "As necessidades da época ditavam que seria inevitável para China e EUA encontrar uma maneira de se unir", escreve ele. "Isso ocorreria mais cedo ou mais tarde, independentemente das lideranças de ambos os países." Os dois gigantes estavam esgotados pela guerra (Vietnã, embates na fronteira soviética) e pelo caos interno (protestos contra a guerra no caso de Nixon, a Revolução Cultural no caso de Mao Tsé-tung). Ambos estavam determinados a resistir ao avanço soviético e assim puderam rapidamente encontrar uma causa em comum. A ameaça de Moscou afastou as preocupações dos líderes dos confrontos envolvendo o Vietnã e Taiwan e aplacou as denúncias mútuas, fossem elas do imperialismo internacional ou do comunismo. Chineses e americanos decidiram que o adversário do meu adversário é meu parceiro, e as coisas assim foram e assim prosperaram por mais de uma década. Mas se tratava de uma época diferente. A China finalmente escapou da louca doutrina de revolução permanente proposta por Mao e dos limitantes gargalos do planejamento central; o país se tornou uma potência industrial. A União Soviética e seu império ruíram. E os EUA, sentindo-se líderes supremos, começaram a promover a democracia com um fanatismo missionário ao mesmo tempo em que se tornavam perigosamente viciados em petróleo, bens e crédito proporcionados pelo estrangeiro. A mudança radical no equilíbrio de poder transformou China e EUA em gigantes econômicos mutuamente dependentes, mas os deixou desprovidos de um modelo estratégico mais amplo dentro do qual pudessem desenvolver sua parceria. É com o objetivo de demonstrar a necessidade de um modelo deste tipo que Kissinger analisa os altos e baixos das relações sino-americanas, chegando até à história antiga da China para definir características nacionais. Kissinger se baseia muito em material recente e em suas anotações das viagens a Pequim para celebrar o pragmatismo dos sucessores de Mao. Ele diz que estes se contentam em se manter dentro de suas fronteiras históricas restauradas, estão dispostos a esperar por uma reunião pacífica com Taiwan e, principalmente, mostram-se determinados a dar prosseguimento ao notável crescimento econômico e a erradicar a pobreza. Kissinger se mostra menos confiante em relação à capacidade americana de sustentar uma política externa estável, destacando que "o perpétuo psicodrama das transições democráticas" é um constante convite aos outros países para que "protejam suas apostas" envolvendo os americanos. Fardo. Como bem sabem aqueles que estudam a obra dele, Kissinger há muito considera a democracia - tanto o clamor democrático dentro dos EUA quanto as tentativas americanas de promover a democracia no exterior - como um fardo que interfere no funcionamento do Estado. Ele invoca uma vez mais as dificuldades que viveu no cargo na década de 70, quando pensou que as manifestações americanas durante a Guerra do Vietnã pudessem levar Mao a crer equivocadamente que uma "verdadeira revolução mundial" estivesse ao alcance. Kissinger argumenta que a "destruição" de Nixon na crise do escândalo Watergate, o fim do apoio do Congresso aos esforços no Vietnã, os novos limites impostos ao poder do presidente e o "sangramento descontrolado" de informações sigilosas combinaram-se para enfraquecer a quase aliança com a China, fazendo com que os EUA parecessem ineficazes contra os soviéticos. Ele se mostra feliz por ver que Jimmy Carter não deixou que suas preocupações com o respeito aos direitos humanos interferissem nas relações com a China, e também pelo fato de a personalidade jovial de Ronald Reagan ter superado as "contradições quase incompreensíveis" de suas negociações com Pequim ao mesmo tempo em que ele promovia a ideia da independência de Taiwan. O mais sério teste desta quase aliança foi a supressão brutal dos anseios democráticos na Praça da Paz Celestial, em 1989. Aquela repressão ta também testou a tolerância de Kissinger em relação à afirmação dos valores americanos no âmbito das relações exteriores.Analisando o passado, ele acredita que tudo depende das circunstâncias: "Há instâncias de violações dos direitos humanos tão inaceitáveis, que se torna impossível enxergar algum benefício na continuidade das relações com o país em questão; exemplos disso foram o Khmer Vermelho no Camboja e o genocídio em Ruanda. Como a satisfação da forma assumida pela pressão pública exige uma mudança de regime ou alguma forma de abdicação, esta pressão é difícil de ser aplicada a países com os quais um relacionamento contínuo seja importante para a segurança americana. Isso é especialmente verdadeiro no caso da China, tão embebida nas memórias de humilhantes intervenções por parte das sociedades ocidentais". Por isso, Kissinger admira a "habilidade e a elegância" demonstradas pelo presidente George Bush quando este andou "na corda bamba" ao punir a China com sanções após a repressão na Praça da Paz Celestial ao mesmo tempo em que pedia desculpas nas cartas particulares aos governantes chineses e por meio dos enviados especiais ao país.O presidente Bill Clinton tentou pressionar a China por algum tempo, destaca Kissinger, mas, quando deixou de fazê-lo, não atraiu manifestações de gratidão; os chineses "não viram o fim de uma ameaça unilateral como uma concessão, e se mostraram extraordinariamente sensíveis a qualquer sugestão de interferência nos seus assuntos domésticos". E, apesar de sua "pauta de promoção da liberdade", o presidente George W. Bush recebe elogios de Kissinger por ter superado "a ambivalência histórica entre o caráter missionário e o lado pragmático das abordagens americanas" à China, chegando a "um equilíbrio razoável de prioridades estratégicas". Se a preferência dos americanos por um governo democrático for transformada na principal condição para o avanço em outros aspectos das relações com a China, conclui Kissinger, "um impasse será inevitável". Aqueles que lutam para disseminar os valores americanos merecem respeito. "Mas a política externa precisa definir tanto os meios quanto os objetivos e, quando os meios empregados extrapolam a tolerância de uma estrutura internacional ou de um relacionamento considerado essencial para a segurança nacional, uma escolha precisa ser feita." Esta escolha "não pode ser evitada", insiste ele, enquanto tenta proteger os próprios flancos com uma esquiva: "O melhor resultado para o debate americano seria uma combinação das duas abordagens: os idealistas devem reconhecer que princípios precisam de tempo para serem adotados e, portando, devem ocasionalmente ser ajustados às circunstâncias; e os "realistas" precisam aceitar que valores têm sua própria realidade e devem ser incorporados às diretrizes operacionais". Mas, no fim, Kissinger mostra-se um defensor da segurança nacional acima de tudo. Espalhadas pela história compilada por ele há numerosas homenagens aos valores americanos e a seu compromisso com a dignidade humana que, de fato, podem às vezes levar as práticas políticas a ultrapassar o mero cálculo do interesse nacional. Foi exatamente o que ocorreu depois que On China começou a ser impresso, com a intervenção de Barack Obama na Líbia. Kissinger pode ter se surpreendido ao ver que a intervenção e o pedido por uma mudança de regime não foram vetados pela China na ONU. Mas ele diz que, atualmente, a "soberania é considerada prioritária", e qualquer tentativa "vinda do exterior" de alterar a estrutura doméstica chinesa "deverá provavelmente incorrer em vastas consequências não intencionais". Além disso, como ele costumava insistir quando praticava a realpolitik em Washington, a causa da paz é também uma luta moral. Esta temática central da vivência e dos conselhos de Kissinger deve ser destilada da história bem conhecida e às vezes sinuosa contada por ele em On China. É somente nas últimas páginas do livro que ele debate a questão essencial do futuro das relações sino-americanas: na ausência de um inimigo comum para uni-los, qual será o fator capaz de manter a paz e promover a colaboração e a confiança mútua entre as maiores potências do mundo? Passado. Kissinger aborda esta pergunta ao olhar para o passado; mais especificamente, ao analisar um memorando redigido por um funcionário de alto escalão do ministério britânico das Relações Exteriores, Eyre Crowe, em 1907. Crowe dizia que era do interesse da Alemanha "construir uma Marinha tão poderosa quanto o possível", e isso levaria por si só a um conflito "objetivo" com o Império Britânico, independentemente do que fizessem ou dissessem os diplomatas alemães. Kissinger observa que existe atualmente nos EUA uma "escola de pensamento Crowe" que enxerga a ascensão chinesa como algo "incompatível com a posição americana no Pacífico", devendo, portanto, ser contida por meio de políticas hostis preventivas. Ele destaca uma crescente ansiedade observada em ambas as sociedades, e teme que esta seja exacerbada pelos americanos que afirmam que a democracia na China seria um pré-requisito para um relacionamento de confiança. Ele alerta que a próxima guerra fria neste contexto atrapalharia o progresso em ambos os países e os levaria a "analisar a própria situação no sentido de concretizar as profecias feitas", quando, na verdade, sua principal arena de concorrência será a econômica, e não a militar. Satisfazendo sua preferência habitual pela arquitetura diplomática, Kissinger insiste que os interesses comuns partilhados pelas duas potências tornariam possível uma "coevolução" que resultasse numa "estrutura mais completa". Ele imagina líderes sábios criando uma "comunidade pacífica" comparável à comunidade atlântica que os EUA conseguiram formar com a Europa. Todos os países asiáticos participariam, então, de um sistema visto como empreendimento conjunto, e não como uma competição entre blocos rivais chefiados respectivamente por China e EUA. E os líderes em ambos os lados do Pacífico seriam incentivados a "estabelecer uma tradição de consultas e respeito mútuo", transformando uma ordem mundial partilhada "numa expressão de aspirações nacionais paralelas". Esta era de fato a missão da primeiríssima viagem de Kissinger a Pequim. E, apesar de o autor não o dizer claramente, ele investe suas esperanças num concerto de países representados - é claro - por múltiplos Kissingers. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL É EX-EDITOR-EXECUTIVO DO TIMES E COBRIU A VIAGEM DE NIXON E KISSINGER À CHINA EM 1972