A destituição do presidente peruano Martín Vizcarra, por “incapacidade moral”, após votação no Congresso nesta semana e a juramentação de Manuel Merino no cargo levou a diversos protestos e questionamentos sobre o cumprimento da Constituição no país. Em entrevista ao jornal peruano El Comercio, o escritor e Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa afirmou que o Congresso violou a Constituição.
“Foi um fato lamentável, como disseram vários juristas peruanos, entre eles o ex-primeiro-ministro Pedro Cateriano, que considerou a atuação do Congresso um verdadeiro golpe de Estado. Acho que a Constituição é muito clara, um presidente pode ser acusado, mas só pode ser investigado ao término de seu mandato. Claramente, o Congresso violou a Constituição”, afirmou Llosa, colunista do Estadão. Vizcarra foi destituído na segunda-feira em um julgamento relâmpago por alegações de corrupção quando o político ainda era governador, antes de assumir a presidência.
Na noite da quinta-feira 12, os protestos nas ruas da capital Lima ganharam grandes proporções e milhares de peruanos saíram em rejeição ao novo presidente. Um grupo que tentou chegar ao Congresso foi dispersado pela polícia com gás lacrimogêneo e tiros com balas de borracha. Os manifestantes queimaram objetos e confrontaram a polícia com pedras e paus.
Para Vargas Llosa, essa reação popular era esperada. “A maioria da população peruana foi contra à maneira de agir do Congresso, por isso está se manifestando em tantas cidades do Peru e a atuação policial deve ser condenada porque foi extremamente violenta com manifestantes que estavam agindo pacificamente contra a decisão deste Congresso”, falou o escritor ao El Comercio.
"Tenho vergonha de quem governa", "Merino não é presidente", "O Congresso é uma pandemia que não acaba", "Nem a covid nos prejudicou tanto quanto Merino", diziam cartazes expostos na praça San Martín, perto do Congresso, na noite de quinta.
Muitos manifestantes estavam vestindo preto, para representar o luto no terceiro dia consecutivo de protestos contra o novo governo, empossado na terça-feira. Na ocasião, o constitucionalista peruano Luciano López afirmou ao Estadão que a destituição havia sido “polêmica”. “A lei autoriza que o Parlamento destitua um presidente por permanente incapacidade moral, mas não define o que é isso. É uma cláusula ambígua e ampla que no fim se resume ao peso dos votos. A primeira votação de destituição do Vizcarra tinha ido para a Justiça, mas o Tribunal Constitucional ainda não tinha dado um parecer quando se tramitava o segundo processo. Diante desse cenário, o Parlamento tomar a decisão de destituir o presidente torna o assunto dúbio. Muitos acreditam que, de certa, forma foi inconstitucional.”
O governo Merino tenta evitar que o Tribunal Constitucional do país o declare inconstitucional ao emitir decisão sobre a demanda feita por Vizcarra após a primeira votação de impeachment que sofreu - da qual havia saído vitorioso. Vizcarra pedia justamente que o tribunal definisse os motivos pelos quais poderia ser declarada a sua "incapacidade moral". A nova ministra da Justiça, Delia Muñoz, pede a renúncia do procurador-geral, Daniel Soria, que defende o Estado na demanda ao tribunal.
Soria afirmou à imprensa peruana que o pedido foi feito sob a justificativa de que "querem realizar uma nova estratégia processual". A ministra da Justiça não comentou as alegações.
Defesa da democracia
“As pessoas estão defendendo a democracia contra o abuso de poder”, disse o parlamentar centrista Gino Costa, do partido Morado, que votou contra o impeachment de Vizcarra.
Muitos manifestantes bateram panelas em um protesto estrondoso raramente visto no Peru no passado. A polícia deslocou dezenas de agentes antidistúrbios ao redor do Congresso e do palácio do governo, enquanto os manifestantes marchavam pacificamente.
Marchas semelhantes aconteceram ao anoitecer nas cidades de Arequipa, Trujillo, Ayacucho, Cusco, Chimbote, Abancay, Tacna, Huancayo e Tumbes, entre outras, segundo a imprensa local.
Em Miraflores, dezenas de veículos com bandeiras peruanas buzinavam em sinal de rejeição ao novo governo. Também houve manifestantes em motocicletas e bicicletas, além dos milhares que marcharam a pé.
“Não é para Vizcarra, é por nós”, dizia um cartaz. “Este Congresso não me representa”, “O povo diz não ao Congresso de sempre”, criticavam outros.
O congressista do partido Morado, que votou de forma unânime contra a destituição, Alberto de Belaúnde, acredita que a polícia abusou do uso da força. “Houve uma violação dos direitos humanos na ação policial. Temos o direito de protestar e devemos ter garantida nossa integridade física. Há uma relação de nomes de feridos graves, que prova o uso inadequado das forças”, afirmou ao Estadão.
Para De Belaúnde, as manifestações são a forma de denunciar o “golpe do Congresso”. “O Congresso violou a Constituição ao usar de forma inadequada uma ferramenta excepcional. É uma narrativa que tem ganhado força na América Latina.” / AFP e EFE, COM FERNANDA SIMAS