PUBLICIDADE

Petróleo é o centro da crise política venezuelana, diz analista

Por Agencia Estado
Atualização:

A Venezuela vive uma crise histórica, de idéias, de forças sociais, de sistemas políticos e, sobretudo, de visões de país. Essa é uma das principais conclusões do diretor da Escola de História, da Universidade Central da Venezuela, Samuel Moncada. Doutor em história pela Universidade de Oxford, Moncada afirma ainda que a crise, que pode levar à renúncia do presidente Hugo Chávez, consiste também em que a Venezuela é um país cuja economia depende da distribuição da receita proveniente da venda de petróleo. Agência Estado - Qual é realmente o papel da companhia Petróleos de Venezuela (PDVSA) em toda essa crise, a de hoje e a de abril deste ano? Samuel Moncada - Nos últimos 40 anos, a Venezuela competiu sempre em termos de preços do petróleo. Os diretores da companhia, antes de Chávez chegar à presidência, afirmavam que, pela quantidade de reservas que o país tinha, a Venezuela estava competindo mal e deveria começar a competir por volume. Isto é, aumentar sua produção dos atuais 3 milhões de barris por dia para 8 milhões de barris por dia. Evidentemente, a PDVSA nunca conseguiria fazer isso sozinha. Por isso, esses dirigentes diziam que seria necessário abrir a companhia ao capital estrangeiro. Primeiro, por meio de uma privatização parcial. Para concretizar isso, no entanto, o país teria de sair da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep). Ocorre que essa estratégia era considerada muito boa para a empresa, mas não para a Venezuela. AE - É aí que começa essa briga interna? Moncada - Esses executivos começaram a diferenciar e separar a PDVSA do país, chamando essa visão de empresarial. Nesse momento, Chávez entra em cena e começa a mudar a estratégia, voltando à visão original dos anos 60, que era a de fortalecer a Opep, cumprir as quotas de produção e trabalhar com a política de preços dessa organização. Essa estratégia que eles chamam de preços justos, não o mais alto, era necessária para o país e para a estabilidade do mercado mundial. AE - Mas foi só isso que detonou a crise que levou parte da companhia à greve? Moncada - Não. Chávez foi além. Começou uma luta interna para auditar a companhia e ver o que estava ocorrendo dentro da empresa, que se havia transformado em uma espécie de caixa-preta. As contas eram incompreensíveis, havia contratos externos com terceiras empresas sumamente estranhos. Por exemplo, a PDVSA contratou uma empresa (Intesa) que seria a responsável pela informatização de toda a companhia, da produção de petróleo ao refino e ao transporte. Tudo automatizado. Quando começou a ser feita uma auditoria, essa companhia, que presta todos os serviços de informatização da estatal, decidiu apoiar a greve negando-se a colaborar com a companhia. Aí a paralisação afetou todo o cérebro da empresa, mais do que os seus músculos. AE - Mas por que os gerentes se negam a voltar ao trabalho? Moncada - Quando em abril o governo Chávez disse que levaria adiante sua estratégia de colaboração com a Opep, os gerentes disseram que o governo estava politizando a empresa, em detrimento dos interesses corporativos dos petroleiros. Ocorre que, dentro da PDVSA, surgiram clãs, até mesmo familiares. Isso resultou em que a cúpula da gerência e a direção intermediária se transformaram em uma casta burocrática que trabalhava em função de benefícios próprios. Por exemplo, engenheiros de universidades públicas são cada vez menos contratados pela companhia e, nos últimos dez anos, são os engenheiros de universidades privadas, onde estudam os filhos dos gerentes, os contratados. Daí, o surgimento desses clãs familiares. E foi isso o que iniciou, há quatro ou cinco anos, a idéia dos responsáveis da PDVSA de querer controlar o país. Isso chocou Chávez. Então ele tentou, mudando a gerência, iniciar uma auditoria dentro da companhia. Mas os gerentes se recusam a aceitar os novos dirigentes afirmando que não vinham de suas linhas de comando, da tradição interna da companhia e começam a rejeitá-los. AE - Isso detonou o golpe de abril? Moncada - Essa foi a desculpa da PDVSA para, em abril, iniciar a greve. Que não era apenas da empresa, mas também decorria de um acordo entre militares, a Confederação de Trabalhadores de Venezuela (CTV), a Fedecámaras, ONGs e partidos políticos, que criaram uma crise em parceria com os meios de comunicação, que, hoje, funcionam como partidos políticos na Venezuela. Esses meios participam até mesmo dessa Coordenadoria Democrática que está exigindo a renúncia de Chávez no momento. AE - Mas qual o papel real desses meios de comunicação? Moncada - Nos primeiros quatro dias desta greve, por exemplo, quando a paralisação parecia estar-se esvaziando, foi esse grupo de jornais e tevês privadas que decidiu dar continuidade à greve e incentivá-la ainda mais, mesmo quando a CTV e a Fedecámaras pareciam já ter desistindo. AE - A crise decorreu então quase que exclusivamente dos conflitos internos na PDVSA? Moncada - Não. Essa é apenas uma desculpa pública. A crise fundamental consiste em que a Venezuela é um país produtor de petróleo e ele pertence ao Estado. Isso quer dizer que a maior receita do país é do Estado, que a distribui para a sociedade. AE - Como é possível que a Venezuela suporte todos esses dias de greve, com quase todas as empresas privadas fechadas? E o prejuízo de tudo isso? Moncada - Acontece que essas empresas não exportam, pois não poderiam dizer a seus clientes no exterior: "Olha não posso exportar porque estamos querendo derrubar o presidente Chávez." Esse setor vive da economia interna e da receita do petróleo. Essa renda é distribuída no gasto público e transferida ao setor privado por meio de contratos de obras públicas, concessões, licenças de importação etc. Isto é, o dinheiro público flui do Estado direto para a economia privada. AE - Isso sempre funcionou assim? Moncada - Quando o Estado estava em mãos dos políticos tradicionais, esse pacto funcionava muito bem assim. Os meios de comunicação, por exemplo, apoiavam os políticos, que, por sua vez, retribuíam com contratos de publicidade, cujos recursos financiavam seus partidos. Estes, por sua vez, davam contratos de obras públicas para construtoras privadas, que pagavam também um certo porcentual para as campanhas políticas. AE - E os sindicatos, onde entram nessa história? Moncada - Eles sempre cobraram comissão ou um porcentual pela assinatura de contratos coletivos, fundamentalmente com as empresas do Estado. Nos anos 70, a Venezuela tinha 12 milhões de habitantes e PIB de US$ 12 bilhões. Éramos um país relativamente rico. Mas hoje somos 23 milhões de habitantes com um PBI de pouco mais de US$ 13 bilhões. Isto é, ficamos pobres. Metade da população vive da economia informal. Não estão nos sindicatos e tampouco na empresa privada. AE - Isso significa que os sindicatos não têm força? Então, como conseguiram paralisar o país? Moncada - Apenas 21% da força trabalhista do país está sindicalizada. Mas os grandes sindicatos não estão na empresa privada, estão no Estado, nos setores de saúde, educação, administração pública e na indústria petrolífera. Isto significa que esses sindicalistas subsistiam com as comissões que cobravam na hora de assinar contratos coletivos com o Estado. AE - Isso explica essa grande aliança da CTV com o setor privado, representado pela Fedecámaras? Moncada - Sim. Em uma economia normal, trabalho e capital sempre têm tensões, têm dificuldades e custam chegar a um acordo. Mas vocês devem perguntar por que aqui essa aliança tem funcionando tão facilmente. Porque basicamente os sindicalistas discutem com seu grande patrão, que é o Estado, e não com os patrões privados. Por isso, eles não têm contradições. Por outro lado, a outra metade da população economicamente ativa não está nem sindicalizada e nem na economia formal. Dessa forma, não poderiam aderir à greve, porque se não trabalham, não comem. AE - Ao chegar ao poder, Chávez interrompe todo esse processo? Moncada - Sim, ele interrompe isso. Chávez representa um fator externo a essa aliança que cresceu durante 40 anos. É bom esclarecer que não se trata de uma aliança política, intelectual ou teórica. Mas uma aliança que cresceu organicamente, porque é social. AE - E Chávez representa o contraponto de tudo isso? Moncada - Chávez representa um setor social que não forma parte desse conjunto orgânico e, ao chegar ao poder, rompe todo esse círculo. Socialmente, o grupo que ele representa, não é parte dessa aliança. AE - Como ou o que ele precisou fazer para atender os setores menos favorecidos? Moncada - Ele decide redistribuir parte da receita das exportações de petróleo para os serviços públicos. Mas a burocracia continua a mesma de 40 anos atrás, e é por aí onde se diluem os recursos públicos. Os hospitais continuam mal e as escolas também, embora tenham melhorado significativamente nos últimos anos, mas não como era esperado. AE - Nesse cenário todo, onde as reivindicações dos mais pobres não foram atendidas, quem então apóia Chávez? Moncada - A população mais pobre, que vê nele uma esperança, já que não espera nada da oposição. O projeto da oposição é apenas de retomar o poder e reconstruir essa aliança redistributiva de recursos provenientes do petróleo, sem oferecer nada às grandes maiorias. A oposição que quer derrubar Chávez as criminalizou, transformou em ignorantes, em assassinos, em bárbaros. Por isso, essa clara e evidente situação de choque social que vive o país. AE - Esse problema detonou também o golpe de abril? Moncada - Esta aliança de empresários, militares, sindicatos, hierarquia eclesiástica, partidos políticos, ONGs que se transformaram em partidos políticos e parte da imprensa fazem parte desse grupo social que tenta derrubar inconstitucionalmente Chávez. A oposição não é apenas política. É também econômica, social, cultural e até mesmo estética. Há uma estética do anti-chavismo e do chavismo. Tudo que é feio e pobre para esse grupo é chavismo. Por isso, os definem como invejosos, ressentidos, vingativos e pessoas que não entendem como se produz riqueza. Para eles, quem é chavista é vulgar, de classe social baixa, sem educação, bêbados, sem dentes, sujos, falam mal, são violentos, são criminosos. AE - E como os chavistas vêem esse grupo que os despreza? Moncada - Os vêem como pessoas que os humilham, que são tirânicos. Esses excluídos não vêem nenhuma chance de serem respeitados dentro do sistema que eles propõem. Por isso, Caracas ficou dividida em alguns setores. O extremo oeste da capital, por exemplo, é pobre, cheio de favelas. A parte leste, é da classe média, média alta. O centro é também pobre. AE - De onde vêm essa resistência e raiva aos meios de comunicação? Moncada - Eles não acreditam neles, até porque são acusados, humilhados e marginalizados. Por isso saem gritando pedindo a verdade e respeito, porque também fazem parte da sociedade. Mas essa parte foi esquecida pelos meios de comunicação. AE - É a pior crise da Venezuela? Moncada - A Venezuela vive uma crise histórica, de idéias, de forças sociais, de sistemas políticos e, sobretudo, de visões de país. O movimento histórico democrático, que começou realmente em 1936, mostrou, com dificuldades, avanços, principalmente nos últimos 40 anos. Mas em 1993 os partidos políticos tradicionais entraram em crise, perdendo suas bases de apoio.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.