18 de janeiro de 2015 | 02h04
Mais moderada, mas não menos eficaz, foi a reação indignada da quase totalidade dos Estados muçulmanos, como também da maior parte das suas populações. Porque, se esses governos condenaram claramente o massacre do Charlie Hebdo, também não aceitam as ousadias daquela publicação.
O fato é que os muçulmanos consideram sacrilégio qualquer representação, mesmo inocente, do rosto do profeta, embora a proibição não esteja mencionada em nenhum lugar do seu livro sagrado, o Alcorão.
Ora, para os muçulmanos, a essa primeira ofensa gráfica acrescenta-se o caráter decididamente desrespeitoso das caricaturas do Charlie Hebdo.
Nessa vasta parte do planeta, marcada por uma espetacular ressurgência de fervor religioso, não se compreende que liberdade de opinião e expressão possa ser pretexto para insultar símbolos espirituais e que o laicismo implique uma desprezível falta de religião. E as pessoas se opõem vigorosamente contra esse direito de ofender perfeitamente reconhecido pela legislação republicana francesa. Por essas razões, as redes sociais foram inundadas de "Je ne suis pas Charlie Hebdo" postados por internautas em cólera.
Nesse aspecto, digno de nota é o caso desse pequeno país árabe diferente dos demais que é o Líbano. Diferente, em primeiro lugar, porque abriga populações tanto cristãs quanto muçulmanas e não existe uma religião de Estado.
O Líbano, porém, não é um Estado laico, pelo contrário. Não só o seu sistema político tem como base a repartição de poderes entre cristãos e muçulmanos, mas a presidência é atribuída aos maronitas, a presidência do Conselho, aos sunitas, e a da Assembleia Nacional, aos xiitas. Além disso, todas as formalidades e procedimentos relacionados ao Estado civil - casamentos, divórcios, heranças, etc - cabem às autoridades religiosas.
Isso quer dizer que, apesar das divisões políticas, as diversas hierarquias espirituais libanesas dão mostra de uma estreita solidariedade diante de afrontas que possam ser feitas a qualquer das crenças do país. A exemplo do governo, todas elas condenaram a agressão terrorista contra os caricaturistas franceses, mas condenaram também qualquer sinal de desrespeito a uma religião.
Essas mesmas nuances foram observadas nos comentários publicados nas redes sociais e também nas colunas dos jornais de Beirute: nitidamente mais numerosos do que o "Je Suis" (Eu sou), ou "Je Ne Suis Pas" (eu não sou), são os "Oui, mais" (sim, mas). Os autores dessas mensagens ressaltam que o Líbano, há muito tempo, tem sido alvo predileto do terrorismo sem que isso preocupe muito o restante do mundo.
Entretanto, o periódico Al-Moustaqbal, órgão da Corrente do Futuro, liderada pela família Hariri, fez sensação ao colocar como manchete, em oito colunas, a célebre frase "Je Suis Charlie". Líder dos sunitas moderados, próxima da Arábia Saudita, a família Hariri parece assim ter respondido da maneira mais espetacular às acusações de apoio velado às organizações extremistas dirigidas contra ela pelo Hezbollah.
O Hezbollah, por seu lado, afirmou que a hecatombe do Charlie Hebdo foi mais prejudicial para o próprio Islã do que todas as charges publicadas pelo semanário. Esse julgamento, de uma serenidade inusitada, surpreendeu por partir de uma milícia que protestou violentamente contra as caricaturas do profeta publicadas na Dinamarca, acolheu à fatwa condenando à morte o escritor Salman Rushdie, é suspeita de ter organizado atentados na América do Sul, além de ter cinco responsáveis respondendo atualmente a processo no Tribunal Especial para o Líbano. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
Issa Goraieb é jornalista do 'L'Orient -le Jour', de Beirute, e colunista do Estado
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