Polônia e Hungria recrudescem leis contra direitos de mulheres e LGBT e desafiam a UE

Questões como violência doméstica, aborto e adoção por casais do mesmo sexo estão na mira desde a chegada dos partidos Lei e Justiça e Fidesz ao poder

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Por Thaís Ferraz e Ilana Cardial
12 min de leitura
Símbolo do Women's Strike é visto próximo à polícia. Entre outubro de 2020 e janeiro deste ano, milhares protestaram contra restrições ao aborto na Polônia Foto: Aleksandra Szmigiel/REUTERS

Em um episódio de recrudescimento contra direitos de minorias no país, a câmara baixa do parlamento polonês votou a favor de um projeto de lei conhecido como “Sim à Família, Não ao Gênero”, proposto por uma coalizão liderada pelo instituto ultraconservador Ordo Iuris.

O documento define família como "a união entre um homem e uma mulher", defende a vida da criança "antes e depois do nascimento" e dá aos pais o direito à educação dos filhos resguardando suas convicções, principalmente morais e religiosas.

Na prática, a aprovação do projeto, que segue agora para consideração pela Comissão Parlamentar de Relações Exteriores e para a Comissão de Justiça e Direitos Humanos do país, levaria à retirada da Polônia da Convenção de Istambul, tratado europeu que busca combater a violência doméstica e contra as mulheres, dias após a Turquia se tornar o primeiro país a revogar o compromisso, assinado pela União Europeia (UE) em 2017.

A decisão é mais um capítulo de uma batalha de anos entre os governos da Polônia e da Hungria, liderados por partidos populistas e conservadores, e grupos minoritários. É também mais um de uma série de desafios lançados pelos dois países à UE – que pode aplicar sanções contra Estados-membros que não resguardem seus valores democráticos ainda este ano, informou em março a vice-presidente de valores e transparência da Comissão Europeia, Věra Jourová, à Bloomberg.

Pessoas manifestam em Bruxelassolidariedade aos ativistas LGBT detidos em protestos na Polônia Foto: Yves Herman/REUTERS

Disputa sem fim

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Ao Estadão, a Embaixada da Polônia em Brasília afirmou que o projeto foi apresentado por cidadãos e não tem vínculo com o governo, acrescentando que ele será “processado como qualquer outro projeto de lei e não há certeza de que entrará em vigor na Polônia”. 

Apesar disso, representantes do partido no poder, Lei e Justiça (PiS, na sigla em polonês) foram praticamente unânimes (houve apenas um voto contrário) na decisão de dar seguimento ao projeto, indo ao encontro da posição já expressada por líderes do partido de que a Convenção, por meio de cláusulas específicas, abre espaço para que a comunidade LGBT “imponha suas ideias sobre gênero a toda a sociedade” e poderia ser usada para impulsionar leis sobre o aborto no país.

Desde a chegada do PiS ao poder na Polônia, ativistas, pesquisadores e observadores alertam para um recrudescimento contra direitos das mulheres e de LGBTs no país. O mesmo acontece com o Fidesz, partido de Viktor Orbán, na Hungria. 

Em janeiro, o governo polonês soou um alerta ao impor, via um tribunal constitucional cuja legitimidade é disputada, novas restrições ao aborto, tornando a prática possível apenas em casos de estupro, incesto ou quando a vida da mãe está em perigo – casos que representaram apenas 2,4% dos 1.100 abortos legais praticados no país em 2019. O anúncio, feito em outubro passado, gerou semanas de protestos em massa.

Protestos contra a proibição quase total do aborto tomaram as ruas de Varsóvia em novembro passado Foto: Slawomir Kaminski/Agencja Gazeta via REUTERS

A paixão em torno do tema não é novidade. O aborto tem sido uma questão central para o PiS, que conquistou o eleitorado polonês mais pobre, mais velho e menos educado ao prometer generosas políticas de bem-estar e um retorno a uma sociedade tradicional. Mas não é a única frente em disputa: educação sexual, contracepção e procedimentos in vitro também entraram na mira.

Em março de 2018, dezenas de milhares de mulheres protestaram contra as tentativas de proibição do aborto, propostas por conservadores Foto: Dawid Zuchowicz/Agencja Gazeta via REUTERS

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Em março, o governo polonês anunciou estar preparando uma nova lei que proibiria adoção por casais do mesmo sexo. A estigmatização da educação sexual e a associação da causa LGBT à pedofilia, capitaneadas principalmente por instituições ultraconservadoras, encontram respaldo em declarações de autoridades do partido e nas instituições do Estado – há dois anos, por exemplo, o Tribunal de Breslávia considerou “informativa e educacional” uma campanha financiada pela ONG Fundacja Pro que trazia mensagens como “O lobby LGBT quer nossas crianças”. E desde 2019, quase cem cidades polonesas, apelidadas de "zonas livres de LGBTs", adotaram resoluções que se opõem aos direitos da comunidade.

Andrzej Duda é presidente da Polônia desde 2015. Está em seu segundo mandato pelo partido conservador Lei e Justiça (PiS) Foto: Kacper Pempel/REUTERS
Na capital, em 2020, nacionalistas pisam em bandeiras de orgulho LGBT como forma de protesto ao que chamam de “agressões LGBT” contra a sociedade polonesa Foto: Kacper Pempel/REUTERS

Na quase vizinha Hungria, um quadro semelhante. Em 2013, o primeiro-ministro e líder do partido Fidesz Viktor Orbán introduziu uma reforma constitucional que consagrou a ideia da família como fundamento da nação na Lei Básica. Em 2018, traçou um plano para uma nova “era cultural”, que incluía a alteração do currículo do jardim de infância para que promovesse uma “identidade nacional, valores culturais cristãos, patriotismo, apego à pátria e à família”. E, em 2019, anunciou uma série de medidas pró-natalistas que incluíam isenção de imposto de renda vitalício para mães de quatro filhos. Em 2020, a Hungria se recusou a ratificar a Convenção de Istambul, argumentando que ela promove “ideologias de gênero destrutivas” e “migração ilegal”.

Primeiro-ministro da Hungria desde 2010, Viktor Orban (Fidesz) tem políticas conservadoras em nome da família e do nacionalismo Foto: Bernadett Szabo/REUTERS

Em 2020, o Parlamento húngaro aprovou uma lei que proíbe a mudança de gênero nos documentos de identificação. O campo “sexo” passou a ser “sexo atribuído no nascimento”, definido como “sexo biológico baseado em características sexuais primárias e cromossomos”. Em dezembro, parlamentares aprovaram uma lei que impede casais homossexuais de adotarem crianças. Família, na constituição húngara, passou a ser “baseada no casamento e na relação pais-filhos. A mãe é uma mulher e o pai, um homem”. 

Pesquisadores, ativistas e observadores defendem que, em ambos os países, a guinada se estabelece a partir da corrosão de instituições, como o Judiciário, e coloca em risco o Estado de Direito, sendo parte de algo muito maior: a erosão da democracia.

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Participantes integram o Festival do Orgulho LGBT em Budapeste, em 2017 Foto: Bernadett Szabo/REUTERS

Um mesmo modus operandi

Polônia e Hungria vêm sendo consideradas filhas problemáticas iliberais da União Europeia. Essa caracterização minimiza diferenças significativas entre os dois países, que têm histórias, dinâmicas sociais e sistemas de governo distintos. Mas existem semelhanças entre os dois.

Ambos vivem uma guinada iliberal impulsionada por partidos que chegaram democraticamente ao poder – e que dividem princípios. “O iliberalismo europeu contemporâneo se apoia em seis pilares ideológicos interconectados: nacionalismo majoritário, retórica de 'lutador pela liberdade', capitalismo nacional, familiarismo, 'oposição ao gênero' e eurocristianismo”, explica Andrea Pető, professora do Departamento de Estudos de Gênero da Universidade Central Europeia de Viena, Áustria. “Seu programa está em constante evolução, reagindo aos desenvolvimentos”.

Para Andrea, a semelhança não para nos princípios. “O modus operandi desses Estados não liberais, que chamamos de Estados poliporos, é o mesmo: criar instituições paralelas, enfocar no familiarismo, operar com ódio e apresentar as questões de política como questões de segurança”, afirma. “A contra-revolução legal que está acontecendo na Polônia já aconteceu na Hungria, e há uma transferência de know-how entre essas forças”.

Líder do PiS, Jaroslaw Kaczynski, e outros parlamentares em sessão no dia 16 de abril de 2020 para debater novas restrições para aborto e educação sexual na Polônia Foto: Slawomir Kaminski/Agencja Gazeta via REUTERS

Ambos os partidos capitalizam em cima de medos e questões históricas, como a identidade nacional, afirma Elżbieta Korolczuk, professora da Universidade de Södertörn, em Estocolmo. “Na Europa Central, existe essa questão de quem somos nós. Somos o centro? Estamos entre o Ocidente e o Oriente?”, explica. “É claro que sabemos pela história que estar alinhado com a Rússia geralmente termina mal, mas ao mesmo tempo não queremos ser aqueles que têm que acompanhar o Ocidente o tempo todo”. Para ela, PiS e Fidesz exploram esse senso de marginalização. “Há um senso de não-prioridade, de que somos os irmãos mais novos a quem o tempo todo dizem o que devemos fazer. Essa espécie de moldura anti-colonial usada por esses partidos têm sido muito útil”.

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Pessoas protestam do lado de fora da Academia de Ciências da Hungria contra os planos do governo de reformar a instituição em Budapeste no ano de 2019 Foto: Bernadett Szabo/REUTERS

Mas ambos os partidos também souberam aproveitar o momento. As transformações econômicas pelas quais Hungria e Polônia passaram após a redemocratização desempenharam um papel importante na chegada desses partidos ao poder, diz Elżbieta. E a crise dos refugiados de 2015 também teve sua utilidade. “Ela foi apresentada como uma ameaça final às sociedades monoculturais e mono raciais. Nesse sentido, é fácil criar uma sensação de estar sob cerco”, afirma.

Temendo o “outro” e questionando princípios e valores liberais do Ocidente, parcelas da população, geralmente de setores religiosos ou conservadores e de cidades menores, sentem que a mudança cultural é demais para elas – e encontram respaldo em partidos que corroboram essa visão. 

Apoiadores de Viktor Orban em um de seus comícios durante a corrida eleitoral de 2014 Foto: Bernadett Szabo/REUTERS

Reflexos

A sociedade civil desempenha um papel importante nesse cenário. “Por muito tempo, na Polônia e em outros países havia essa ideia de que a principal resposta a questões como nacionalismo, xenofobia, desigualdade, estavam na sociedade civil. Mas não prestamos atenção ao fato de que a sociedade civil, em termos de organizações, também pode ser corrosiva à democracia”, diz Elżbieta.

A atuação dessas organizações não fica restrita às fronteiras. “Se você olhar para três organizações: a Tradição, Família e Propriedade (brasileira, ligada à fundação do Ordo Iuris, um dos principais atores anti-gênero da Polônia), o Congresso Mundial das Famílias (Estados Unidos) e o CitizenGO (Espanha) são organizações internacionais que têm cerca de 50 países debaixo de si, cada uma delas”, afirma a professora Agnieszka Graff-Osser, do Centro de Estudos Americanos da Universidade de Varsóvia, para quem as relações transnacionais e o dinheiro movimentado pela direita religiosa devem ser ponto de atenção. 

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Na UE, outros países são vistos por Polônia e Hungria como possíveis aliados. Em 2020, o governo polonês manteve contato com República Checa, Eslováquia, Eslovênia e Croácia com objetivo de criar um ato jurídico internacional de proteção dos direitos da família, que na prática se tornaria uma alternativa à Convenção de Istambul.

A UE vem tomando algumas medidas. O bloco acionou o artigo 7.º do Tratado da União Europeia, iniciado quando existe um risco claro de violação grave dos valores da UE e que pode resultar na suspensão de certos direitos de um Estado, contra a Polônia em 2017 e contra a Hungria em 2018. O procedimento continua em curso, mas observadores indicam que o cenário piorou nos dois países desde então.

Em dezembro do ano passado, o impasse orçamentário entre Hungria e Polônia e UE foi travado em torno de uma cláusula que condicionava repasses à observância do Estado de Direito. Houve um acordo, e a condicionalidade está em vigor desde 1 de janeiro de 2021, mas pouco foi feito até então.

Comissário europeu do Orçamento, Johannes Hahn, fala durante sessão plenária sobre o mecanismo vinculado ao Estado de Direito, em março Foto: Aris Oikonomou/Pool via REUTERS

Em fevereiro, uma das líderes do Women’s Strike, principal movimento de mulheres da Polônia, discursou no Parlamento Europeu e exigiu mais ações da UE. “Nós, o povo polonês, apelamos para que vocês lutem por nós, cidadãos europeus, que atuamos como defensores da liberdade na Polônia. Fazemos isso todos os dias, nos colocando na linha de frente pelos valores fundamentais sobre os quais a União Europeia foi construída”, disse Marta Lempart na ocasião.

Ao Estadão, Marta afirmou que o bloco faz uma decisão política, não legal, quando encara encara a questão como “uma questão de direitos humanos”. “Eles fingem não entender que a questão do aborto na Polônia, por exemplo, é na verdade uma questão de Estado de Direito e Independência do judiciário, porque esse é o caminho fácil”, afirma. “Eles sabem que se admitirem isso, precisarão tomar alguma atitude”.

“Nós somos um campo de treinamento”, acrescentou Marta, para quem o que acontece hoje na Polônia pode em breve acontecer em outros países, dentro e fora da UE. “Vemos estratégias menores que foram usadas aqui sendo testadas em diferentes países, como a cláusula de objeção de consciência (usada por médicos para não realizar procedimentos de aborto) por exemplo, na Itália”, diz. “Isso está se espalhando e será espelhado em muitos outros lugares que têm governos semelhantes ao governo polonês: populistas, neofascistas, fortemente fundamentalistas”. 

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Procurada, a Embaixada da Polônia em Brasília afirmou que “desde as transformações democráticas do ano 1989, a Polônia está empenhada em promover e proteger os direitos humanos e os valores democráticos tanto a nível nacional, como através de vários fóruns internacionais”. De acordo com a Embaixada, o país “cumpre, deste modo, todas as normas decorrentes da Convenção de Istambul e também coopera com o mecanismo de controle da Convenção”.

Marta Lempart, líder do movimento Women's Strike, durante um dos protestos no último mês de novembro na Polônia Foto: Slawomir Kaminski/Agencja Gazeta via REUTERS

A embaixada afirma, ainda, que “à luz da lei e do entendimento do Governo polonês, não existem "zonas livres de LGBTs". “A Carta dos Direitos da Família adotada por alguns governos locais e as resoluções que estão na oposição às mudanças do modelo tradicional de vida social e familiar não contêm referências a zonas LGBT e baseiam-se no direito de liberdade de expressão, constitucionalmente garantido”. 

A Embaixada da Hungria não respondeu aos pedidos de comentário até o fechamento desta reportagem.

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