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Por 17 dias, o fantasma da fome e do canibalismo

Fim. Parente do mineiros Dario Zegovia recolhe os pertences da família no Acampamento Esperança; reinício incerto

Por Rory Carroll e Jonathan Franklin
Atualização:

Na cama do hospital perto da mina de San José, o chefe de turno Luis Urzúa - o homem que manteve vivos os mineiros chilenos por dois meses -, com os olhos escondidos pelos óculos pretos, fala de decisões difíceis a quase 700 metros sob a terra, quando todas as esperanças pareciam perdidas. "Tudo era decidido por votação. Éramos 33 homens, portanto 17 era a maioria." Na medida que surgem os primeiros relatos sobre a vida dos 33 confinados na mina, define-se um quadro complexo de disputas, divergências e até confrontos físicos que sugere que a versão oficial pode ter sido devidamente pasteurizada. Como o capitão de um navio, Urzúa, 54 anos, foi o último mineiro a sair do refúgio, na quarta-feira. O presidente Sebastián Piñera o recebeu com lágrimas nos olhos e saudou os homens como modelos de solidariedade. Mas, numa entrevista a The Guardian, Richard Villaroel, outro membro de "los 33", disse que a verdade não é simples. A expectativa da morte, o desespero, as brigas mesquinhas e o medo tácito e obsessivo do canibalismo aterrorizava o grupo. Villaroel pintou um quadro mais complexo do drama em comparação com a versão que dominou a cobertura da imprensa. "Estávamos esperando a morte. Estávamos nos consumindo - ficamos muito magros". Falando enquanto os homens eram levados rapidamente para o hospital em Copiapó, o mecânico de 23 anos disse que o ânimo no interior da mina mudou de maneira radical do desespero e divisão para a euforia e a união. Nos primeiros 17 dias - antes que uma sonda enviada da superfície chegasse até a caverna -, os mineiros se preparavam para uma morte lenta e solitária por inanição. Alguns deles estavam tão desesperados que deitavam e não queriam mais levantar. Villaroel achou que nunca veria sua filha que acabava de nascer. Imediatamente depois do deslizamento na mina, na hora do almoço do 5 de agosto, Urzúa mandou alguns homens para investigar. Alguns pegaram uma picape, na tentativa de subir lentamente pelos vários quilômetros de túneis. Como as nuvens de poeira limitavam a visibilidade a menos de um metro, sem conseguir enxergar o caminho acabaram batendo. "Estávamos imaginando o que seria possível fazer e o que não", disse Urzúa. "Depois, tivemos de pensar na comida." A ração diária dos escassos estoques era de meia colher de atum em conserva. Villaroel disse: "Falamos disso na primeira reunião que tivemos quando ficamos presos. Todos concordaram que deveríamos dividir igualmente a comida. Um pouquinho de atum a cada 24 horas. Nada mais."Seus corpos encolheram. Villaroel perdeu 12 quilos. "Enquanto trabalhávamos, o esforço nos corroía. Nossos corpos começaram a se comer por dentro e a ficar cada vez mais pele e ossos. Isso é canibalismo, disse um marinheiro lá em baixo. Meu corpo estava se consumindo." Tiveram medo de outro tipo de canibalismo, mais literal? Villaroel parou um pouco."Naquele momento, ninguém falou nada a respeito. A certa altura virou objeto de piada, mas só uma vez, depois que nos encontraram. Antes, não se falou nisso." A água da mina que os homens foram obrigados a tomar era poluída. "Tinha um gosto ruim. Continha muito óleo, das máquinas, mas tínhamos de beber."Urzúa tentou instilar neles a aceitação filosófica do seu destino. "Todos os dias ele nos dizia que tivéssemos força. Se nos encontrassem, muito bem, se não, fim. Como as sondas (que os procuravam) estavam muito distantes, não tínhamos esperança. A força veio por si. Eu nunca havia rezado antes, mas aprendi a rezar, a me aproximar de Deus." Villaroel disse que os homens se dividiram em grupos de trabalho. "Nós, os mecânicos, formamos um grupo, cuidamos dos veículos. Outras pessoas organizavam a comida, o racionamento". Quando a sonda finalmente os alcançou, a euforia tomou conta deles. "Foi uma felicidade imensa para todos nós. Assim que o tubo chegou, cantamos o hino nacional. Pintamos a sonda. A adrenalina era tanta naquele momento, que não conseguíamos pensar." Assim que apreenderam que seriam salvos, firmaram um "pacto de sangue" de não revelar tudo o que aconteceu sob o Deserto de Atacama.Numa videoconferência com os parentes, na semana passada, Darío Segovia, operador de perfuratriz de 48 anos, fez uma alusão até que bastante clara aos problemas: "O que aconteceu na mina, ficará na mina."Um desses segredos, aparentemente, diz respeito à divisão que atormentou o grupo durante algum tempo. Apesar do pacto, surgiram várias brechas na versão oficial de forte união e solidariedade entre "los 33". A primeira sugestão de divisões está no primeiro vídeo que os mineiros mandaram para a superfície: só apareceram 28. Os outros cinco - Juan Aguilar, Raúl Bastos, José Henríquez, Juan Illanes e Villaroel - não são vistos. Onde estavam? As autoridades não deram nenhuma explicação. José Villaroel, o pai de Richard, disse que o mecânico ficou chocado com os colegas que "se exibiam" diante da câmera. Quando os parentes enviaram câmeras para cada mineiro, Villaroel foi um dos poucos que as mandaram de volta. Outro mineiro, Osman Araya, disse a seu irmão Rodrigo que se formaram três grupos e que havia brigas por causa do espaço e da execução do trabalho.O jornal espanhol El País noticiou que os cinco que faltavam no vídeo trabalhavam para uma empresa terceirizada e haviam criado sua própria dinâmica de grupo - preparando sua própria estratégia de fuga pelos túneis. A divisão acabou quando o diretor da empresa, da superfície, ordenou que se integrassem ao grupo principal. Um primeiro teste do "pacto" se dará a respeito da divisão igualitária do pagamento das entrevistas, dos royalties dos livros, os direitos de reprodução cinematográfica e os presentes que provavelmente receberão em grande quantidade. Segundo foi informado, os homens concordaram em assinar um contrato registrado prometendo dividir esta fortuna. Como alguns provavelmente receberão mais do que outros - principalmente Urzúa e Mario Sepúlveda, um showman nato - poderá haver a tentação e a pressão das famílias para que façam acordos individuais. / TRADUÇÃO ANNA CAPOVILLA

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