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Por que a China está aumentando seu arsenal nuclear?; leia a análise

Fortalecimento nuclear de Pequim é, em última instância, uma tentativa de forçar Washington a abandonar o visível assalto estratégico e aceitar uma relação de 'vulnerabilidades mútuas'

Por Tong Zhao
Atualização:

PEQUIM — Esqueça poderio nuclear. É hora de os Estados Unidos falarem com a China a respeito de vulnerabilidades mútuas.

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É evidente que Pequim está expandindo rapidamente seu arsenal nuclear. Imagens de satélites comerciais sugerem que a China está construindo mais de 100 novos silos para mísseis balísticos intercontinentais. Relatos que emergiram no mês passado dão conta de que a China testou um míssil hipersônico com capacidade de ser armado com ogivas nucleares que circum-navegou o planeta — o primeiro país a fazê-lo. O mais graduado oficial militar americano confirmou posteriormente que esse "evento significativo", e agora o Pentágono está alertando que a China poderá quadruplicar seu arsenal até 2030.

Juntando isso tudo, preocupações a respeito de um “rompimento estratégico” com a China são compreensíveis. Sem uma disposição de EUA e China de entabular um diálogo claro, os resultados poderão ser catastróficos.

Imagens da reunião decúpula entre Joe Biden e Xi Jinping são exibidas em restaurante de Pequim. Foto: REUTERS/Tingshu Wang

Alguns especialistas americanos argumentaram que a China está testando sistemas vetores de armas nucleares porque está buscando maneiras de contornar a defesa aérea americana, o que especialistas em armamento atômico de Pequim temem ser capaz de anular a capacidade de seu país de absorver um ataque nuclear dos EUA e depois retaliar.

Enquanto essa interpretação pode estar tecnicamente correta, ela não dá conta do panorama geopolítico mais amplo. O desenvolvimento incremental dos sistemas de defesa com mísseis dos EUA não consegue explicar o relativamente abrupto fortalecimento chinês. Em vez disso, o presidente Xi Jinping ordenou em março a "construção (mais) acelerada de avançados sistemas de dissuasão", estratégia que, muito provavelmente, reflete uma preocupação mais profunda, de que a capacidade nuclear inferior da China poderia encorajar a hostilidade americana e minar a ascensão de Pequim, num momento crucial de intensa competição entre as grandes potências.

Autoridades chinesas expressaram a crença de que os EUA estão mais desesperados na busca de impedir pela força a China de superar os EUA economicamente (no curto prazo) e militarmente (mais adiante). Os chineses percebem uma crescente pressão dos EUA sobre direitos humanos, estado de direito, Hong Kong e Taiwan como evidência de que o governo americano está disposto a correr riscos maiores para impedir a ascensão da China deslegitimando seu governo, desestabilizando o país e bloqueando sua unificação nacional.

Passei um breve período trabalhando como funcionário civil de Pequim para assuntos internacionais, mais de uma década atrás, e atuei nos últimos sete anos como especialista independente de política nuclear. É evidente para mim que o fortalecimento nuclear de Pequim é, em última instância, uma tentativa de forçar Washington a abandonar o visível assalto estratégico e aceitar uma relação de "vulnerabilidades mútuas" — no qual nenhum dos países teria a capacidade ou a disposição de ameaçar o outro com uma guerra nuclear sem arriscar sua própria destruição.

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Soldados batem continência em frente a mísseis com capacidade nuclear durante desfile militar em 2009. Foto: REUTERS/David Gray/File Photo

Os Estados Unidos têm relutado em atender ao desejo da China por tal relacionamento, o que contribuiu para a ansiedade em Pequim sobre a busca dos EUA por "segurança absoluta". Para evitar que a competição nuclear aumente, é hora de os Estados Unidos reconhecerem a existência de fato de vulnerabilidade nuclear mútua com a China.

Isso pode soar como uma jogada ousada, mas devemos lembrar que há precedentes para isso. E a alternativa sombria exige esforço. A declaração conjunta Reagan-Gorbachev de 1985 de que "uma guerra nuclear não pode ser vencida e nunca deve ser travada" ajudou a baixar a temperatura da Guerra Fria. Um compromisso mútuo semelhante por parte dos líderes americanos e chineses ajudaria a neutralizar a corrida armamentista emergente de hoje.

Isso ajudaria a estabilizar a relação bilateral mais importante do mundo. Também daria a Pequim a garantia de que os Estados Unidos estão dispostos a aceitar a coexistência pacífica e a se abster de desafiar os interesses centrais da China (dentro do razoável).

Os presidentes da China e dos Estados Unidos, Xi Jinping e Joe Biden, respectivamente. Foto: David McNew/Reuters

Reduzir a ameaça do holocausto nuclear também poderia abrir oportunidades para negociações de controle de armas substantivas - por exemplo, sobre a limitação do desenvolvimento de novos sistemas de mísseis e armas contra-espaciais - além de ajudar a conter a competição militar bilateral de forma mais ampla. Com maior confiança no futuro teor das relações EUA-China, Pequim poderia estar inclinada a agir de forma mais proativa para cooperar com Washington em outros problemas bilaterais, como disputas comerciais e ataques cibernéticos, ou desafios globais urgentes como a pandemia de covid-19. Claro, existem riscos de que o tiro saia pela culatra.

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A China poderia concluir que seu acúmulo nuclear funcionou como uma tática de pressão e, portanto, um maior acúmulo militar pode exigir concessões ainda maiores nos EUA.

Aliados americanos no Leste Asiático, em particular, têm preocupações compreensíveis de que a China possa aumentar sua agressão militar de nível convencional assim que o risco de escalada nuclear estiver fora da mesa.

E sempre há a chance de a China interpretar o reconhecimento dos EUA da vulnerabilidade mútua como um sinal de que Washington está disposto a ignorar os esforços de Pequim para promover seus percebidos "interesses centrais", como ocupar um território disputado no Mar da China Meridional ou alcançar a unificação com Taiwan.

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Embarcações chinesas e russas participam de exercício militar conjunto no Mar do Japão. Foto: Russian Defence Ministry/Handout via REUTERS

Da mesma forma, a China pode esperar que os Estados Unidos parem de reclamar dos direitos humanos e da repressão doméstica, alegando que as críticas ameaçam a segurança do regime de Pequim. Isso poderia minar os esforços do presidente Biden para defender os valores universais na diplomacia.

Mas reconhecer a vulnerabilidade mútua não precisa ser um ato de fé cega. Existem medidas que os Estados Unidos podem tomar para mitigar esses riscos.

A América deve convidar a China a falar francamente sobre a vulnerabilidade mútua, usando o diálogo como uma oportunidade para obter esclarecimentos e compromissos recíprocos para criar as condições necessárias para a aceitação formal da vulnerabilidade mútua.

A China precisa apresentar uma estrutura aceitável para os dois lados sobre suas expectativas específicas de um relacionamento de vulnerabilidade mútua. Isso deve incluir o detalhamento do que constitui uma verdadeira violação dos interesses centrais da China versus uma discordância política de alto nível - por exemplo, não tratar as trocas normais sobre questões de direitos humanos como tentativas de derrubar o regime - e quais garantias Pequim poderia fornecer para resolver as preocupações dos EUA sobre o comportamento militar regional da China e planos em relação a Taiwan. Uma opção pode ser discutir medidas militares de fortalecimento da confiança com aliados dos EUA no Leste Asiático ou renunciar à resolução militar de disputas territoriais.

Vídeo do governo chinês mostra uigures convertidos trabalhando em fábricas em Xinjiang: programa não permite escolha aos detentos Foto: (CCTV via AP Video, File)

É improvável que a China queira se dobrar - mas, para fazer isso funcionar, deve ser flexível. Também é do interesse da China entender que, assim como a vulnerabilidade mútua EUA-Rússia não protegeu Moscou das críticas americanas sobre os direitos humanos, a vulnerabilidade mútua EUA-China muito provavelmente não forçaria Washington a "respeitar a China" da maneira que as autoridades chinesas desejarem. E isso não seria porque o arsenal nuclear da China é muito pequeno. Em vez disso, a rejeição pública da China de uma ordem internacional baseada em regras provavelmente faz as autoridades americanas questionarem a sabedoria de aceitar a vulnerabilidade mútua mais do que qualquer outra coisa.

Mas eles deveriam. Quanto mais cedo os dois lados perceberem que é o entendimento compartilhado de comportamentos aceitáveis - não o acúmulo nuclear unilateral - que estabilizará seu relacionamento, mais rápido eles podem encerrar essa escalada nuclear perigosa e insanamente perdulária e colocar os recursos em melhor uso para enfrentar desafios urgentes como o pandemia e mudanças climáticas.

Reconhecer a vulnerabilidade nuclear mútua é um passo útil e necessário para colocar o relacionamento bilateral em um caminho muito mais construtivo.

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*É integrante do Programa de Política Nuclear do Carnegie Endowment for International Peace com sede em Pequim. Ele também é o autor de "Reduzindo a lacuna entre Estados Unidos e China na defesa contra mísseis: como ajudar a prevenir uma corrida armamentista nuclear”

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