Por que a política na Argentina está surpreendentemente estável; leia a análise

Com as eleições legislativas se aproximando, o país é um caso à parte na região

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Por María Esperanza Casullo/ Americas Quarterly
Atualização:

NEUQUÉN, Argentina - Os debates e escândalos em torno dos lockdowns e vacinas, que têm ocorrido em toda a América Latina, também tomaram conta da Argentina, onde a pandemia provocou mais de 110.000 mortes. Por outro lado, a economia do país continua afetada pela queda de 9,9% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2020, taxas de inflação e pobreza acima de 40%, e tudo isso com dois ex-presidentes competindo por influência.

Um leitor pode concluir que a Argentina, que terá eleições de meio de mandato em novembro, está prestes a uma explosão, especialmente se consideramos como países vizinhos, outrora elogiados pela estabilidade, como Chile, Peru e Colômbia, descambaram para crises políticas e distúrbios sociais. Mas à medida que a campanha engrena, o sistema político argentino se mostra surpreendentemente calmo.

Vice-presidente argentina, Cristina Kirchner durante votonas eleições legislativas primárias, em 12 de setembro. Foto: Walter Diaz / TELAM / AFP

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Outrora considerada um caso perdido de instabilidade, a Argentina hoje tem duas coalizões políticas estáveis. De um lado a Frente de Todos, no governo, uma aliança populista de esquerda representando o movimento político peronista. Na oposição está a aliança liberal conservadora Juntos por el Cambio, organizada pelo partido Proposta Republicana (PRO) e a agremiação mais antiga, a União Cívica Radical — coalizão que elegeu Mauricio Macri em 2015. Essas duas alianças representaram 88% dos votos na última eleição e continuam robustas à medida que as eleições de meio de mandato se aproximam — um cenário surpreendente num país propenso a crises e colapsos desde sua transição para a democracia em 1983.

De fato, lembranças ainda persistem dos tumultos e protestos que forçaram dois presidentes democraticamente eleitos a renunciarem, primeiro em 1989 e depois em 2001, quando a saída de Fernando de la Rua desencadeou uma sucessão de cinco presidentes nomeados pelo congresso em duas semanas.

Em 2003, quando as eleições foram finalmente realizadas, o sistema partidário argentino estava em frangalhos. Nenhum dos seis candidatos mais votados recebeu mais de 24% dos votos. Carlos Menem , que acabou em primeiro lugar, chocou o país ao anunciar que não participaria do segundo turno da eleição. O segundo colocado no primeiro turno, Néstor Kirchner, foi empossado com apenas 22% dos votos.

A agitação política continuou com dezenas de políticos influentes criando novos partidos, incluindo aliados do ex-presidente Menem em protesto contra a ascensão do poder de Néstor e sua mulher, Cristina Fernández de Kirchner. Empresários ambiciosos passaram da atividade empresarial para a política e criaram suas próprias estruturas políticas, incluindo Mauricio Macri. O Congresso se tornou uma miscelânea de pequenas forças políticas. O sistema partidário inteiro parecia irremediavelmente fragmentado e várias figuras competiam pela liderança.

Vinte anos depois, a Frente de Todos, de Cristina Fernández de Kirchner, e a aliança Juntos por el Cambio, de Mauricio Macri, dominam o cenário político, cada um mostrando um nível inesperado de resiliência. Muitos esperavam que hoje essas alianças estariam em pedaços. No caso da aliança de Macri, formada em 2015 para combater os receios de alguns dentro do UCR com o objetivo de derrotar o peronismo, ela o levou a se tornar o primeiro presidente não peronista e não radical em mais de um século. Mas seu governo acabou em frustração, e, depois de perder a reeleição, alguns achavam que o UCR, partido mais antigo e mais institucionalizado, deixaria a coalizão e reclamaria seu papel como o único partido de oposição. O que não ocorreu.

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Igualmente surpreendente é o fato de a Frente de Todos se manter unida. A coalizão foi criada três meses das eleições de 2019, unindo a maior parte das pequenas agremiações peronistas que haviam se separado anos antes. Líderes como Sergio Massa, Roberto Lavagna e até mesmo o presidente Alberto Fernández, que deixou o peronismo insatisfeito com o estilo personalista de liderança de Cristina Kirchner e voltaram ao grupo depois de não conseguir derrotá-la nas urnas ou criar seu próprio partido. Analistas achavam que essa aliança incômoda desmoronaria sob o peso da Covid e a desaceleração da economia, ou por causa de escândalos como a recente festa de aniversário para a primeira dama na residência presidencial que muitos acharam não ter sido respeitado o distanciamento social. Mas no momento a Frente de Todos está unida para a eleição de novembro.

O presidente argentino, Alberto Fernandez, durante as eleições legislativas primárias. Foto: ESTEBAN COLLAZO / AFP

Vários fatores são chave para manter essas coalizões intactas. Dois são institucionais: o primeiro é o fato de a Argentina nunca ter permitido candidatos independentes e as leis eleitorais e a organização incentivam a criação de partidos. O segundo é uma lei aprovada em 2009 que determina a realização de eleições primárias simultâneas para todos os partidos que pretendam competir nas eleições nacionais e incentiva a competição dentro das coalizões.

Duas outras razões da força das coalizões são menos fáceis de definir. A primeira é a polarização política. Qualquer questão que surja na política argentina, de impostos a direitos de gênero ou medidas contra a Covid, é submetida à dinâmica de oposição entre governo peronista e anti-peronistas. Se um lado defende uma coisa, o outro é contra. Até agora a polarização tem ajudado a manter o caráter de duas coalizões no sistema político argentino. O segundo fator é o papel desempenhado por Mauricio Macri e Cristina Kirchner, mantendo suas respectivas coligações unidas.

Desde 2007, a disputa entre os dois líderes tem definido a política argentina. As personalidades e ideologias de Mauricio Macri e Cristina Kirchner são totalmente distintas, mas ambos comandam suas próprias alianças com punho de ferro, criando uma conexão forte, profundamente emocional, com seus apoiadores. Cada um deles comanda o apoio de um bloco substancial de eleitores - mas também são rejeitados por uma fração similar da população que vota. Esta dinâmica os forçou a aceitar aliados e possíveis rivais dentro das respectivas alianças.

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Cristina Kirchner, por sua vez, preferiu não disputar a presidência em 2019 e escolheu Alberto Fernández para ser o candidato da sua coalizão. Embora muitos esperassem que ela desafiaria Alberto, até agora tem se mantido à margem. A ordem dos candidatos nas listas para a eleição de novembro foi negociada entre os dois e seu crítico Sergio Massa e aprovada sem muita confusão.

Por outro lado, devido ao baixo apoio de Mauricio Macri nas pesquisas e o desejo dos seus parceiros de coalizão de avançarem com vistas à eleição presidencial em 2023, ele parece cada vez mais disposto a passar o bastão para o provável sucessor, o prefeito de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta, depois de muita hesitação. Mas há um longo caminho para transformar a aliança Juntos por el Camino de uma marca pessoal numa coalizão institucionalizada.

É preciso observar, contudo, que a atual estabilidade de nenhum modo tem garantias de durar. Pode ser que os próximos dois anos antes da eleição geral sejam apenas um período de calma antes da tempestade. Se a situação econômica não melhorar rapidamente para muitos argentinos, se mais escândalos surgirem e se as mortes em consequência da Covid aumentarem drasticamente por causa da variante Delta, a situação pode mudar e até mesmo deteriorar rapidamente. Como estão as coisas no momento, governo e oposição vêm enfrentando um dia de cada vez.

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Tradução de Terezinha Martino

*Maria Esperanza Casullo é cientista política e professora na Universidade Nacional de Rio Negro. Ela é autora de Por Qué Funciona El Populismo? (Por que o Populismo Funciona?).

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