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Por que Hungria e Polônia bloquearam o orçamento da UE e abriram 'guerra fria' contra o bloco

Países liderados pela extrema direita ameaçam paralisar planos de retomada econômica e de combate à covid-19 no bloco europeu; eles discordam da cláusula que vincula a liberação do dinheiro ao respeito a padrões de democracia 

Por Paulo Beraldo
Atualização:

Em novo capítulo de uma disputa interna da União EuropeiaHungria e Polônia vetaram o orçamento do bloco europeu para os anos de 2021-2027. Para vigorar, a proposta sobre os recursos precisa de apoio dos 27 Estados-membros, mas está sendo paralisada pelas duas nações que têm enfraquecido o equilíbrio entre os três Poderes, a liberdade de imprensa, de oposição e a independência do Judiciário

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Em jogo estão 1,074 trilhão de euros (R$ 6,79 trilhões) do orçamento plurianual e mais 750 bilhões de euros (R$ 4,74 trilhões) do pacote de recuperação pós-pandemia. Enquanto a UE exige que o financiamento dependa do respeito a esses requisitos, Hungria e Polônia reiteram que não vão aceitar tal cláusula. Nesta semana, os dois países se disseram abertos a novas propostas "em conformidade com os tratados da União Europeia". 

Apesar da disputa financeira, o pano de fundo da batalha é a guerra fria instalada entre UE e os dois governos liderados pela extrema direita, que têm desafiado sistematicamente o compromisso com princípios do Estado de Direito impostos pelo bloco europeu ainda nos anos 1990. Hungria e Polônia, que foram repúblicas comunistas, enfrentam processos por minarem a independência do judiciário, as liberdades individuais, a imprensa livre e perseguirem a oposição política.

Se por um lado Polônia e Hungria desafiam princípios do grupo, a situação da União Europeia, que vivenciou recentemente o Brexit, é delicada. O bloco luta para se manter coeso e conservar sua relevância no cenário internacional. "Polônia e Hungria gostariam de diluir ainda mais o mecanismo ou obter garantias de que ele não será acionado contra eles - o que tornaria sua existência inútil", explica Daniel Hegedüs, pesquisador do German Marshall Fund especializado em populismo e retrocesso democrático na Europa Central e Oriental. 

Os primeiros-ministros da Polônia e Hungria em discurso Foto: Zoltan Fischer/Hungarian Prime Minister's Press Office/REUTERS

"Eles temem que, no longo prazo, possam perder o acesso aos fundos da União Europeia devido às graves deficiências do Estado de Direito e, por isso, confrontam instituições e outros Estados-Membros para evitar esse cenário". 

No xadrez da União Europeia, são muitas as propostas na mesa. Holanda e Finlândia apoiam uma forte condicionalidade do Estado de Direito ao acesso aos fundos para garantir que outros países da UE não caminhem para se tornarem autocracias. Há quem defenda a separação do fundo de recuperação do mecanismo do Estado de Direito e, em seguida, o benefício para uma coalizão sem Hungria e Polônia - proposta que desagrada a Alemanha.

A prioridade da chanceler Angela Merkel é manter a Europa Central e Oriental engajada e evitar outro Brexit, sem alienar nenhum país do acesso ao fundo, explica Wolfgang Münchau, diretor da consultoria Eurointelligence. "O mais provável é que o projeto de lei atual seja aprovado, mas a Alemanha e uma coalizão de países concordem em nunca aplicá-lo. Vai se tornar uma lei fantasma, simbólica e sem sentido", diz. 

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"Separar o fundo derrotaria Viktor Orbán e Mateusz Morawiecki. Eles não poderão mais chantagear a União Europeia. Se os dois países mantiverem o veto, cortariam seus próprios fundos. Seria xeque-mate", opina Münchau. 

Tal plano é visto por Daniel Hegedüs como uma ameaça útil, uma vez que Polônia e a Hungria perderiam acesso a 23 bilhões de euros (R$ 145 bi) e 4,3 bi de euros (R$ 27,2 bi), respectivamente. "Oferecer concessões demais para esses países pode encorajar um comportamento semelhante - praticamente uma extorsão - no futuro", diz Hegedüs. 

"A situação de hoje mostra que os Estados autocratas podem ter toda a União Europeia como refém, e na falta de resposta uma determinada, essa pode ser a nova normalidade no futuro", avalia Hegedus. Münchau concorda que ceder às pressões seria danificar a democracia na Europa permanentemente. "Irá encorajar a corrupção e o abuso de poder também em outros países. É uma ladeira escorregadia". 

​'Decisão enviesada'

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Questionada, a Embaixada da Polônia no Brasil respondeu que a determinação de uma violação do Estado de Direito exige unanimidade segundo o Tratato da União Europeia. No entanto, a legislação proposta, diz o governo polonês, introduz a maioria qualificada, o que permitiria "uma decisão enviesada, que não leva em conta a opinião de todos os Estados". 

"A Polônia rejeita o mecanismo de condicionalidade do orçamento da UE. Não aceitamos regras discricionárias baseadas em critérios arbitrários e políticos. Se adotados, podem levar a padrões duplos e diferenças de tratamento entre os países da UE", afirmou a Embaixada.

O governo polonês argumenta que a diversidade dos sistemas fiscais e judiciários dos países deve ser respeitada. "Defendemos a igualdade de todos os Estados perante a lei e o cumprimento dos tratados da UE. Lutamos por um bom orçamento, mas também pelos valores e princípios". Procurada, a Embaixada da Hungria no Brasil não respondeu aos pedidos de entrevista. 

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Sede da União Europeia em Bruxelas Foto: REUTERS/Yves Herman

Distanciamento

Mais do que uma disputa pelo orçamento, a pesquisadora Carolina Pavese, professora de relações internacionais da ESPM especializada em União Europeia, vê uma ameaça aos princípios que fundaram o bloco europeu. Em 1993, os países assinaram o Tratado da UE em Maastricht, ampliando ainda mais a integração econômica, que viria a ter moeda única no futuro, e abrindo espaço para a cooperação em diferentes âmbitos, a maior circulação de pessoas e o estabelecimento de padrões de direitos e liberdades individuais. 

"Hungria e Polônia estão se distanciando cada vez mais dos valores fundamentais da União Europeia. São ultraconservadores, autoritários e seguem a linha populista com o discurso de derrotar os fracassos e a corrupção da esquerda", afirma Pavese. 

Na Polônia, o governo do atual presidente, Andrzej Duda e do premiê Morawiecki, apoiado pelo Partido Lei e Justiça (PiS), está no poder desde 2015 e promoveu reformas controvertidas na Justiça com o argumento de combate à corrupção - para a oposição, foram atos para cercear liberdades e aparelhar o Estado. Também vem reforçando uma retórica contra os homossexuais e em defesa da manutenção dos "valores da família". 

Na Hungria, o autocrata Viktor Orbán e seu partido, o Fidesz, vêm promovendo há 10 anos ataques contra o judiciário, a oposição política, a imprensa livre e tem reduzido os direitos civis, dificultado a atuação de ONGs e o combate à corrupção nos altos escalões. Um dos exemplos mais recentes foi a cruzada legal contra a Universidade Centro-Europeia, fundada pelo magnata húngaro-americano George Soros, desafeto do premiê. Com tantas barreiras legais, a instituição, considerada um baluarte do liberalismo, se viu obrigada a mudar para a Áustria. 

"São modelos de sociedades conservadoras e Estados autoritários, altamente corruptos, que favorecem apenas os seus e não conseguem lidar com nenhuma oposição, abafando a sociedade civil e limitando o acesso a direitos. Isso tudo contraria os princípios basilares da União Europeia", afirma Carolina Pavese. 

O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán e o primeiro-ministro polonês Mateusz Morawieckiparticipam de uma coletiva de imprensa após sua reunião em Budapeste. Foto: EFE/EPA/Andrzej Lange

Hungria e Polônia chegaram a ter apoio da Eslovênia, liderada pelo premiê Janez Janša, um ultraconservador, no bloqueio ao orçamento na semana passada. Pavese pontua que, em nível de chefia de Estado e de governo, não vê movimentos como o da Hungria e Polônia sendo endossados. Mas observa que há movimentos conservadores de extrema direita, com discurso xenófobo, ascendendo com partidos minoritários em vários Estados membros - fenômeno que não é recente. 

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"A Bulgária e a Eslovênia são candidatas óbvias a entrar no clube das autocracias iliberais da União Europeia. No entanto, também há exemplos positivos na Europa Central e Oriental, como a Eslováquia e a Romênia, que conseguiram voltar à direção democrática", pondera Daniel Hegedüs.

Correções

Diferente do informado na versão inicial da reportagem, Polônia e Hungria não integraram a União Soviética. 

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