‘Potências falam de paz, mas enviam armas’

Ex-mediador da ONU para conflito sírio, diplomata argelino diz que fracasso na solução da guerra civil provocou crise de refugiados e ascensão do EI

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Por Jamil Chade CORRESPONDENTE e GENEBRA
Atualização:

A comunidade internacional armou grupos rivais na Síria e, apesar de adotar o discurso de que defendem uma solução política para a guerra, todos ainda apostam em uma solução militar. A avaliação é do diplomata argelino Lakhdar Brahimi, ex-mediador da guerra na Síria, crítico do papel das potências no conflito. Hoje com 81 anos, Brahimi foi um dos mediadores mais destacados no mundo e durante 30 anos atuou como uma espécie de “bombeiro” da ONU em dezenas de crises – passando por Zaire, Camarões, Iêmen, Burundi, Angola, Libéria, Nigéria, Sudão e Costa do Marfim. Dois anos depois de mediar a crise na Síria, ele pediu demissão de seu cargo.

O diplomata afirma que negligência da comunidade internacional em relação à guerra civil causou a atual crise de refugiados na Europa – e isso era previsível. “É como a lei da natureza. Se você tiver muita água em algum lugar, não tem como aprisioná-la. Ela vai transbordar. O conflito é assim também. Se você não resolver o problema, ele irá transbordar. Os primeiros refugiados irão para um país vizinho, a um quilômetro da fronteira. Os segundos irão um pouco mais longe e assim por diante.” 

Lakhdar Brahimi lutou pela independência da Argélia como integrante da Frente Nacional de Libertação (1954-1962) e foi nomeado ministro das Relações Exteriores da Argélia em 1991, ocupando o cargo até 1993. Desde que deixou a função, atuou como representante da ONU em diversas crises, incluindo conflitos no Sudão e na Costa do Marfim Foto: REUTERS/Amr Abdallah Dalsh

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Brahimi também avalia que, com a solução da questão nuclear iraniana praticamente decidida em acordo feito entre a República Islâmica e as principais potências do mundo, “a esperança é de que todos direcionem suas atenções para a Síria e passem a colocar o interesse do povo sírio no topo da lista”. A seguir, trechos da entrevista.

Por que o sr. renunciou ao cargo de mediador? Eu já queria sair um ano antes. Ali, já estava tudo acabado. Não estávamos avançando a nenhum lugar. Mas John Kerry foi até Moscou e me disse para eu esperar até ele voltar da Rússia porque poderia ser que tivesse algo. De fato, eles fecharam uma declaração muito boa naquele momento. O problema é que não conseguiram implementá-la. Logo depois, a crise na Ucrânia apareceu. Tivemos, depois, as negociações em Genebra que não foram, de fato, negociações. Foi apenas um show. Os russos me pediam para ficar. Mas decidi que o melhor que eu poderia fazer pelo processo de paz era renunciar e dizer ao mundo que aquilo não estava funcionando. Foi meu alerta.

Como o sr. avalia hoje a situação da Síria? É pior do que quando o deixou o cargo? Sim, as coisas estão muito mais perigosas. Se você não resolve uma situação como essa, ela irá piorar. E tem piorado a cada dia. Agora, temos problemas no Iraque e na Síria – e a interferência de Israel. Por isso, o problema se tornou mais complicado e mais difícil. Os sírios estão sofrendo. A comunidade internacional tem sido extremamente injusta com o povo sírio. Eles têm sofrido e recebido pouquíssima ajuda das agências das Nações Unidas. Alguns doadores foram generosos e somos gratos por isso. Mas, politicamente falando, acredito que o mundo tem sido injusto com a população síria.

Vemos agora que esses sírios estão chegando à Europa e os governos reagem como se tivessem sido pegos de surpresa. Isso também era previsível? Claro que era previsível. É como a lei da natureza. Se você tiver muita água em algum lugar, não tem como aprisioná-la. Ela vai transbordar. O conflito é assim também. Se você não resolver o problema, ele irá transbordar. Os primeiros refugiados irão para um país vizinho, a um quilômetro da fronteira. Os segundos irão um pouco mais longe e assim por diante. Por isso, esse grande fluxo de refugiados era previsível.

Na semana passada, vimos a Áustria construir um muro em sua fronteira. O senhor esperava tal reação por parte dos europeus?  Não pensei que essa seria a reação. Eu entendo que países europeus se sintam sobrecarregados com a chegada de tantas pessoas e é compreensível que eles estejam um pouco preocupados. Grandes países na Europa deveriam ter pensado nas consequências da guerra na Síria e, talvez, ter ajudado um pouco mais, mostrado mais disposição em ajudar a resolver a crise no país. Sim, é um fardo, é difícil. Nós dizemos que existe uma aldeia global. Mas, nessa aldeia global, parece que só a Coca-Cola tem fácil acesso a se movimentar por ela. Falamos de solidariedade e responsabilidade, mas o Líbano possui uma população de 4,5 milhões de habitantes e existe 1,2 milhão de refugiados oficialmente registrados no país. Na verdade, existem 2 milhões de refugiados. Um exemplo que sempre dou é justamente o do Líbano. Em uma pequena cidade de 30 mil habitantes do país, 20 mil são refugiados e o prefeito disse que 20 mil não são um problema. 

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Qual a solução, então, para a guerra? Os sírios têm sido incapazes de resolver o próprio problema sozinhos. Teria sido muito melhor para eles dizer: “Esse é nosso país, não queremos matar uns aos outros, seja por razões internas, ou pior ainda, por objetivos externos.” Infelizmente, isso não aconteceu. Os países vizinhos seriam os países que poderiam ajudar. Mas eles também não ajudaram. Como consequência, a comunidade internacional teve de ajudar. Mas fracassamos. 

Até que ponto a ofensiva militar russa influencia numa solução?  Independentemente do motivo, as pessoas têm de perceber que esse conflito tem de acabar. Existe uma intervenção russa, há o Estado Islâmico e também temos o fluxo de refugiados sírios na Europa. Espero que todos esses elementos combinados sirvam para chamar a atenção de todos sobre a necessidade de acabar com a guerra civil.

A inclusão do Irã nas negociações pode mudar o destino do processo de paz? Os países vizinhos estão interferindo na Síria, incluindo o Irã. E para resolver o problema, temos de usar todos aqueles que estão interferindo para o bem ou para o mal. Aqueles que tem interesse, influência ou ambos. O Irã, definitivamente, tem as duas coisas, então, é bom que esteja lá. Vamos esperar que o Irã e todos os outros países sejam construtivos. 

O sr. acredita que o acordo nuclear teve de ser fechado antes para que o Irã se sentasse à mesa como um parceiro legítimo? Os iranianos insistem que esses são dois temas separados. Não queriam ser chantageados e nem chantagear ninguém, no estilo “o Irã ajuda a Síria se conseguir algo na questão nuclear”. Agora, é muito bom que o problema iraniano tenha sido superado. A esperança é de que todos direcionem suas atenções para a Síria e passem a colocar o interesse do povo sírio no topo da lista. Isso não aconteceu até agora. 

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E o que fazer com Bashar Assad? Até agora, os países têm falado de seus interesses. E quando falam da Síria, falam do senhor Assad. Vamos falar do interesse do povo sírio. Depois, o que aconteceria com Assad cairia dentro dessa solução, depois de tudo o que ocorreu – e a história nos ensina que não se volta ao ponto de início. Foram 250 mil mortos, metade de um país destruído. Portanto, o desafio é o seguinte: não vamos voltar ao que tínhamos. Mas para onde vamos? Ao olhar para uma resposta a isso, a pergunta óbvia toca Assad e outras pessoas: onde vão se sentar à mesa? Para onde irão? Mas o mais importante é saber o que o povo sírio precisa e quer, depois de ter sido tão injustiçado por mais de quatro anos. Não somos justos com o povo sírio. Não estamos ajudando. Agora, podemos ser mais diretos. 

Mas por que leva tanto tempo para que isso seja reconhecido? Começamos desde o início a dizer que não existe uma solução militar. Mas alguns me diziam: “você está errado. Haverá uma solução militar e logo”. O governo de Assad nos dizia que era uma questão de semanas para lidar com a crise. O outro grupo dizia que o governo estava podre e cairia na semana que vem, no mês que vem. Depois de três anos, todos tiveram de reconhecer que não havia uma solução militar. Ao mesmo tempo em que mudavam de discurso, continuavam a trabalhar por uma solução militar. Todos falam de solução diplomática enquanto mandam armas. O mundo armou essa guerra. Armas entram na Síria, treinamentos ocorrem, o governo recebia ajuda do Hezbollah e dos iranianos. Todos diziam que não havia uma solução militar. Mas todos agiam para que houvesse uma. A ONU era a única que não agia assim. Portanto, espero que agora haja uma constatação de que todos terão de trabalhar por uma solução política. 

O sr. considera o Estado Islâmico como uma ameaça real? Com certeza. Mas o Estado Islâmico é um produto iraquiano e um produto da invasão do Iraque pelos americanos e pelo governo sectário que foi estabelecido. Essa é a origem do grupo. Eles expandiram as operações para a Síria porque havia um vácuo. Eram uma parte da franquia da Al-Qaeda e a liderança os alertava de que não deveriam ir além do Iraque. Foi nesse momento que houve a ruptura entre os dois. Para derrotar o Estado Islâmico, será necessário lidar com o problema que produziu o Estado Islâmico as divisões sectárias do próprio Iraque. 

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Como a guerra civil na Síria vai ser lembrada no futuro? O fim da Guerra Fria não permitiu a criação de um novo sistema internacional que funcionasse para todos. Não tivemos uma nova ordem mundial depois de 1989. Estamos numa longa transição. Os governos do mundo precisam continuar a trabalhar para criar uma ordem mundial em que uma guerra na Síria não seria permitida.

PARA LEMBRAR: Diplomata deixou cargo em 2014

Desde o início da guerra civil surgida na sequência dos protestos contra o líder sírio Bashar Assad, no contexto da Primavera Árabe, a ONU tentou repetidas vezes chegar a um acordo diplomático para o conflito. O primeiro enviado da entidade para tentar alcançar um consenso entre as partes envolvidas no confronto foi o ex-secretário-geral Kofi Annan, em 2012.  O diplomata chegou a sugerir um plano de paz para pôr fim a guerra, patrocinado pela ONU e a Liga Árabe, que envolvia seis eixos principais: a formação de um governo que representasse todos os lados do conflito, um cessar-fogo monitorado pela ONU, assistência humanitária às partes atingidas, libertação de presos políticos, fim da censura à imprensa e respeito aos direitos humanos. O plano fracassou e Annan renunciou. O diplomata argelino Lakhdar Brahimi o substituiu e ao longo de dois anos no cargo viu duas conferências internacionais que tentavam negociar o fim do conflito, em 2012 e 2014. Mais tarde naquele ano, o diplomata africano também acabou desistindo de intermediar as negociações para o fim do conflito. 

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